domingo, 4 de julho de 2010

Análise das Obras Indicadas ao Vestibular da UEM

Poemas Escolhidos (Cláudio Manoel da Costa)

Arcadismo

O Arcadismo, iniciado (em Portugal em 1756 e) no Brasil em 1768, é um movimento de reação ao exagero barroco de meados para o final do século XVIII. É importante lembrar que o Barroco, chamado de arte da contra-reforma, era uma escola de influência religiosa (predominantemente católica e inquisitorial) que havia entrado em decadência juntamente com o modelo absolutista.
Racionalmente influenciados pelas idéias iluministas francesas, os poetas buscam a retomada da simplicidade e resgatam alguns princípios da Antiguidade Clássica (daí ser chamado de neoclassicismo), por considerarem ser este o período de maior equilíbrio e pureza. Corresponde a um momento de Revolução Industrial, que conduziu homens do campo às cidades, onde a carestia e a dificuldade de encontrar colocação, levava-os a situações complicadas. Assim, Rousseau, filósofo deste momento histórico, prega o ideal do “bom selvagem” (o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe. Para manter seu “status” de bom o homem deve abandonar a cidade (lugar onde a falsidade impera) e voltar para a “sadia rusticidade dos costumes rurais” (campo).
Este pensamento atingiu não só poetas, mas todas as artes do século XVIII, estendendo-se inclusive à arquitetura (que se tornas mais racional e passa a construir palácios nos modelos de inspiração greco-romana; além de decorá-los com motivos inspirados na natureza (Rococó) e dotá-los de jardins (natureza convencional).
Há três princípios latinos básicos para a compreensão desse estilo de época:
a) Carpe diem (aproveite o dia): máxima proposta pelo poeta latino Horácio. Significa viver o presente, aproveitando-o ao extremo, visto que o tempo passa rapidamente.
b) Inutilia truncat (cortar o inútil): desejo de retirar dos textos tudo o que for excessivo, exagerado ou redundante, como o barroco.
c) Fugere urbem (fugir da cidade): princípios de valorização da natureza, vista como lugar de perfeição e pureza, em oposição à cidade, onde tudo é conflito. Ideal pregado por Rousseau.

A partir destes três princípios fundamentais o Arcadismo, é possível compreender as demais características do período:
1 – retomada da teoria aristotélica da arte como imitação da natureza, usando a razão (mimesis). O poeta apreende o sentido de perfeição expresso pela natureza e tenta reproduzi-lo ao escrever. Há uma preocupação em situar o homem em ambientes em que a natureza aparece como “pano de fundo, cenário.”
2 – respeito às teorias literárias dos antigos, utilizando as normas poéticas da Antiguidade (neoclassicismo);
3 – simplicidade na forma e no conteúdo dos poemas; versos curtos; ausência de rimas em alguns versos;
4 – bucolismo e pastoralismo (exaltação da vida do campo, uso de cenários pastoris);
5 – presença da mitologia, num retorno aos valores clássicos;
6 – equilíbrio entre a razão e a fantasia, através de uma “disciplina literária” a ser estabelecida pelas Arcádias (Academias) e seguida por seus membros;
7 – uso de palavras simples, de fácil entendimento, sem serem vulgares;
8 – preocupação com a finalidade moral da literatura;
9 – desejo de mostrar uma realidade onde nada seja feio, idealizando-a.

Arcadismo no Brasil

Portugal, nos séculos XVII e XVIII, encontra-se economicamente decadente, dependendo do capitalismo inglês. E, para contrabalançar seu comércio deficitário, procura explorar suas colônias, em especial o Brasil. Isto faz com que um maior numero de colonos passe a trabalhar na mineração, proibindo o estabelecimento dos engenhos na região de Minas Gerais.
Por volta de 1750, as minas de ouro começaram a diminuir drasticamente a sua produção, não sendo possível os colonos pagar os impostos estabelecidos pela metrópole.
As idéias revolucionárias desenvolvidas na Europa, a Revolução Industrial, a Revolução Francesa, a Independência das colônias inglesas na América (Estados Unidos) e a cobrança de impostos altíssimos em ouro feitos por Portugal aos colonos brasileiros despertaram a necessidade da busca da Independência do Brasil, desencadeando uma serie de revoltas.
Todo o contexto favorecia uma transformação social. E a intelectualidade colonial brasileira será uma das responsáveis por ela.
Ao longo da formação de Minas Gerais, a partir da descoberta do ouro, em fins do século XVII, e das pedras preciosas, em inícios do XVIII, com o surgimento de núcleos populacionais e de uma vida urbana incipiente, a circulação de manuscritos foi crescente. Já na segunda metade do setecentos, estando proibida a existência de casas impressoras, muitos poemas manuscritos se difundiram de um espaço a outro, passando de privados a públicos, graças à ação de copistas nem sempre preparados para este mister.
Desta fase, a década de 1780 ficará registrada na história da literatura brasileira e dos sucessos políticos do país, mais especificamente de Minas Gerais, como um dos períodos, ao mesmo tempo, mais ricos e mais dramáticos de nosso passado. Por uma feliz ou infeliz coincidência, aproximam-se nesses anos de 80, em terras mineiras, três dos poetas que realizaram a obra literária de maior significado no cenário brasileiro da época, obra madura a atestar uma vitalidade artística, visível em vilas e povoados mineiros, tanto na pintura, quanto na arquitetura, na imaginária, na produção musical, etc. Em Vila Rica, conviveram como amigos e intelectuais, e souberam trocar uns com os outros sua experiência, no campo da poesia e da política, os poetas Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Inácio José de Alvarenga Peixoto.
O Arcadismo, no Brasil, determina o nascente valorização da obra literária, que começa a tomar rumos de caráter nacional, afastando-se dos modelos europeus.
O sentimento de apego à terra brasileira aflora, tendo como referência a simplicidade da natureza marcada pela poesia européia. O sentimento nativista preencherá as paginas das obras literárias com a exaltação do índio, que passará a ser visto como herói nas obras épicas do período.
O Arcadismo brasileiro originou-se e concentrou-se principalmente em Vila Rica ( hoje Ouro Preto) MG, e seu aparecimento teve relação direta com grande crescimento urbano verificado nas cidades mineiras do século XVIII, cuja base econômica era a extração de ouro. O crescimento espantoso dessas cidades favorecia tanto a divulgação de jovens brasileiros, providos das camadas privilegiadas daquela sociedade, foram buscar em Coimbra, já que a Colônia não lhes oferecia cursos superiores.
Ao retornarem de Portugal, traziam consigo as idéias iluministas que faziam fermentar a vida cultural portuguesa à época das inovações políticas e culturais do ministro Marquês de Pombal, adepto de algumas idéias de ilustração. Essas idéias em Vila Rica, levaram vários intelectuais e escritores a sonharem com Inconfidência do Brasil, principalmente após a repercussão da independência dos EUA (1776). Tais sonhos culminaram na frustada Inconfidência Mineira (1789).
Cecília Meireles, em seu Romanceiro da Inconfidência Mineira, registra o espírito febril provocado pelo ouro:
“Mil galerias desabam; mil homens ficam sepultados, mil intrigas, mil enredos prendem culpados e justos; já ninguém dorme tranqüilo, que a noite é um mundo de sustos.”
Com a publicação de Obras Poéticas, de Cláudio Manoel da Costa, em 1768, tem início o Arcadismo no Brasil, onde destacam-se: Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antonio Gonzaga, Basílio da Gama, Silva Alvarenga e Frei José de Santa Rita Durão.

A história e o conceito de “clássico”
O Clássico na Grécia

A referência primeira e maior que se tem sobre o Clássico está na Grécia e em Roma, durante o período que se convencionou chamar de Antiguidade Clássica. Período longo que abriga muitos fatos e muitas idéias, nem sempre ligadas, necessariamente, ao fenômeno que ele denomina. Que se trata de uma antiguidade é um fato inquestionável; que essa antiguidade é totalmente clássica, isso é plenamente discutível. Comecemos por determinar esse período.
Os historiadores, como uma maneira didática de estudar a História, dividiram-na em períodos. Ao primeiro período da história ocidental, chamaram de Antiguidade Clássica, abrangendo um longo tempo entre os séculos VIII a. C. e o século V da Era Cristã. Assim, a Antiguidade Clássica vai da redescoberta da escrita pelos gregos (século VIII a. C) à queda do império romano no Ocidente, no ano 476 (século V), resultado das invasões dos chamados povos bárbaros, provenientes do norte da Europa, a partir do século IV. Como podemos ver, trata-se de um longo período de treze séculos. Muitas pessoas aludem a esses 1300 anos como se fossem uma coisa só! Nada mais errôneo. As duas principais culturas da Antiguidade Clássica – a grega e a romana – se assemelham, mais esta àquela do que o contrário, mas são diferentes e, evidentemente, agem de modo diferente e com propósitos diferentes, na política, na guerra, na religião, na organização social, no comércio...
Para o grego, então, o que é o Clássico? Diz-se Clássico o período cultural da Grécia entre o século V a. C. e o século IV a. C. Parece pouco, não? Contudo, se o conhecimento produzido nesses cem anos tivesse sobrevivido na íntegra, os estudiosos teriam matéria para muitos e muitos séculos de estudo... Só de peças teatrais trágicas, há uma estimativa de que tenham sido produzidas mais de mil tragédias, das quais apenas trinta e duas sobreviveram... É nesse chamado Século de Ouro da Grécia, que se produz o maior nível artístico e intelectual do Ocidente, legando à humanidade futura um bem de valor incalculável.
Não é por acaso que nesse momento a democracia toma o lugar da tirania; a filosofia questiona a verdade estabelecida; a palavra escrita ganha relevância jamais vista sobre a palavra oral; o teatro trágico mostra que a humanidade precisa de homens, não de heróis; cria-se o conceito de cidade (pólis) e de cidadão (polites), e o direito é comum a todos os que são iguais – os cidadãos. É a era de escritores como Ésquilo, Sófocles e Eurípides, a tríade do teatro trágico grego, e de filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles. E a cidade de Atenas, na Ática, é o palco de todas essas transformações.

O Clássico em Roma

Como estamos fazendo uma incursão pelo mundo clássico, é necessário que avancemos um pouco além e cheguemos a Roma. Esta cidade que dominaria o mundo, primeiro pelas armas, depois pela herança cultural, começou como uma simples vila de pastores, na metade do século VIII a. C., em 753. A Roma que nos interessa, mais especificamente, neste tópico, é a Roma compreendida entre o século I a. C. e o século I da Era Cristã, quando a famosa cidade, já centro do mundo conhecido, atinge seu melhor momento artístico-cultural, apesar de conturbado momento político que vai da transição da República ao início do Império (cerca de 60 a. C. a 29 a. C.), passando pelas guerras civis. A Grécia também viu seu momento especial ser marcado pelas guerras contra os persas (início do século V a. C., cerca 499-479) e até contra Esparta, na famosa guerra do Peloponeso (431-404 a.C.).
Assim, podemos marcar o período Clássico em Roma do aparecimento da retórica com Cícero, por volta de 80 a. C., até o romance de costumes com Petrônio, cerca de 68 da nossa era. Nesse intervalo se produziu o melhor da literatura latina com o aparecimento de grandes poetas, protegidos por Mecenas, amigo do imperador Augusto: Catulo, Horácio e Virgílio estão entre eles. Nessa época também surgiria o maior dos poemas do mundo latino – a Eneida (17 a. C.), poema que celebra a glória de Roma, na figura de Enéias, o troiano incumbido da ingente tarefa de fundar uma nova Tróia, que daria origem à mais gloriosa das cidades. É o período que se costuma chamar de Século de Augusto. Veja no mapa abaixo a localização de Roma, na Península Itálica, numa situação privilegiada e estratégica no Mediterrâneo.

O Classicismo

Seguindo o raciocínio desenvolvido sobre o Clássico, período que criou na Grécia e em Roma momentos de alta qualidade cultural e literária, é de se esperar que estas características sejam irradiadas ao longo da história da humanidade e recuperadas ciclicamente. Assim, vemos o século XV nos trazer o mundo moderno e, a reboque, a consolidação dos valores clássicos, já apregoados pelo humanismo, desde o século XI. O Renascimento, movimento filosófico, artístico, cultural e político, que nasce na Itália e se alastra pela Europa ocidental, tem como desdobramento natural o Classicismo. O Classicismo europeu se configura para nós brasileiros na obra do português Luís Vaz de Camões (1525-1580), principalmente em Os Lusíadas (1572), poema épico da glorificação da navegação portuguesa e da descoberta do caminho para as Índias, permitindo a expansão para o Oriente, através do Atlântico, oceano de navegação, até então, desconhecida. O poema retoma a tradição da épica clássica de Homero e Virgílio, na exaltação dos feitos heróicos de um povo, de uma nação ou de um herói, com a exaltação centrada na figura histórica do navegador Vasco da Gama (1469-1524), tomado metonímica e ficcionalmente como a nação lusitana.
Assim, não se pode confundir o Clássico com o Classicismo. O Classicismo é por definição um movimento cultural que visa ao retorno do Clássico, em outra circunstância, com outros objetivos. A nova Europa que nascia das grandes navegações, a partir de 1453, com a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, era o campo propício para a volta dos grandes heróis épicos, navegadores, cujo símbolo maior eram Ulisses e Enéias. Os ideais filosóficos de busca da verdade são retomados e a verdade absoluta da Igreja Católica, de base medieval, é questionada. O cisma religioso com Martinho Lutero (1483-1546), a partir da publicação de suas teses contra a venda de indulgências, em 1517, fortalece ainda mais o Renascimento, pois o protestantismo significa perda da hegemonia da Igreja Católica. O mundo que se descortina com novas culturas leva a novas reflexões, e a própria configuração do universo se modifica com o heliocentrismo de Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642) e outros. Para o momento, nada melhor do que ter o homem como centro desse universo – antropocentrismo – em oposição ao teocentrismo medieval. É isso que faz o gênio de Leonardo da Vinci (1452-1519), quando imagina e desenha O Homem Vitruviano. Nada mais clássico do que o homem como medida de todas as coisas...

O Neoclassicismo

Como última representação do Clássico greco-latino toma força, no século XVIII, o Arcadismo ou Neoclassicismo, em plena era da racionalidade iluminista. Tratava-se de um movimento literário nascido na Itália, desde 1690, com a Arcádia Romana, e continuado em Portugal (Arcádia Lusitana, 1756), de onde chegaria ao Brasil e floresceria na Minas Gerais aurífera de 1768 em diante. O ideal do movimento era a volta ao estado natural dos tempos míticos da Idade de Ouro, tempos em que os homens desfrutavam da companhia dos deuses e não precisavam trabalhar ou acumular, pois a natureza farta e generosa se encarregava de prover todas as necessidades. Essa vida simples, em meio à natureza deleitosa, sem preocupações com o amanhã, que se perde diante da ganância do homem, tem sua origem no poema Os trabalhos e os dias, do poeta grego Hesíodo (século VIII a. C.). Constatamos, pois, que, pelo tema ou pelo nome do movimento – Arcadismo –, a ligação com o Clássico é inquestionável. Esse momento, porém, como um de seus nomes indica, trata de um Novo Classicismo. Não sendo o Classicismo do século XV, também não é o Clássico da Idade Antiga, mas vai buscar o alimento da sua doutrina em ambos. Podemos dizer que o Clássico greco-latino é contemporâneo de si mesmo, procurando o seu próprio mundo e seu próprio tempo. O Classicismo surge em um momento propício ao retorno do heroísmo passado por causa da expansão provocada pelas grandes navegações. Agora o Neoclassicismo prega a volta a um passado mítico, de homens moderados, em perfeito equilíbrio com a natureza acolhedora e os deuses que os criaram. Por que esta busca de um tempo mítico e idílico? Corrompidos por si mesmos, os homens brutalmente jogam-se uns contra os outros e a queda é fatal: na Idade de Ferro em que se encontram, não há mais espaço para Vergonha (Aidôs) e Justiça (Nêmesis), deusas que se retiram de seu convívio. Os homens já não vivem em harmonia consigo mesmos, muito menos com os deuses...
Sem a contribuição do Clássico greco-latino, não teríamos, por exemplo a obra-prima de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) Marília de Dirceu.

Cláudio Manuel da Costa (Glauceste Saturnio) Depois de estudar no Brasil com os jesuítas, completou seus estudos em Coimbra, onde se formou advogado. Em Portugal, tomou contato com as renovações da cultura portuguesa compreendida por Pombal e Verney. De volta ao Brasil, Cláudio Manuel exerceu em Vila Rica a carreira de advogado e administrador. Sua carreira de escritor teve inicio com a publicação de Obras Poéticas, em 1768. Em 1789, foi acusado de envolvimento na Inconfidência Mineira.
Oficialmente a história registrou a morte de Cláudio Manoel da Costa como suicídio por enforcamento. Segundo alguns, o poeta não teria revestido ao sentimento de culpa, uma vez que havia delatado, sob tortura, os participantes da conjuração.Com tudo, essa versão vem sendo contestada. Até hoje, em Ouro Preto, se fala que varias igrejas badalaram os sinos quando da morte do poeta. Por tradição, a igreja nunca toca os sinos a suicidas, o que pode ser indicio de assassinato e não suicídio. A poetisa Cecília Meireles, no livro O Romanceiro da Inconfidência, também põe em dúvida a versão oficial:


“- Dizem que não foi corda
Nem punhal atravessado,
Mas veneno que lhe deram,
Na comida misturado.
E que chegaram doutores,
E deixaram declarado
Que o morto não se matara,
Mas que fora assassinado.”



Sua obra é a que melhor se ajustou, formalmente, aos padrões do Arcadismo europeu, mesmo ambientando de forma clara a sua paisagem no cenário mineiro.
Pode-se, pois, perceber três fases bem demarcadas na produção literária de Cláudio Manuel da Costa, se se levar em conta a cronologia e, ainda, o desdobramento de uma poética e de uma ideologia: a primeira, constituída dos poemas escritos em Coimbra, bem nos moldes barrocos, e dirigidas quase sempre a figuras religiosas com que o poeta conviveu na Universidade; a segunda, constituída das Obras, onde fica patente o conflito do poeta, dividido entre duas orientações estéticas e dois tipos de apelo, o da Arcádia ideal e o da terra de origem, com sua natureza e ambiência cultural distintas; e a terceira, feita de poemas escritos em 1768 ou após, alguns deles em homenagem ao Conde de Valadares, governador recém-chegado a Minas, aí incluídas as composições de Obras poéticas, recitadas em palácio, em 1768, na posse do governador, e o drama O Parnaso obsequioso, representado em dezembro do mesmo ano, no dia do aniversário do Conde. Pode-se perceber aqui a mudança de rumos do poeta em relação a sua matéria de poesia, de que o poema Vila Rica, de publicação póstuma, daria claro testemunho: ao cantar sem reserva a fundação de Vila Rica e as origens da capitania, Cláudio dá indícios, nessa fase final, de um envolvimento mais estreito com as raízes e, concomitantemente, de uma preocupação possivelmente menos estética e mais ideológica com a fatura de seus versos.
O poeta cultivou a poesia Lírica e a Épica. Na Lírica, tem destaque o tema da desilusão amorosa e da angústia do homem que se afasta do campo e vai para a cidade (“Quem deixa o trato pastoril amado/ pela ingrata civil correspondência”). A situação mais comum em seus sonetos é Glauceste, o “eu” Lírico pastor, lamentar-se por não ter correspondido por uma musa inspiradora, Nise. Ou, então, lastima-se por se encontrar num lugar de grande beleza natural, mas não estar acompanhado pela mulher amada.
Nise é uma mulher personagem fictícia, incorpórea, presente apenas pela situação nominal. Não se manifesta na relação amorosa, não é descrita fisicamente, nem da qualquer mostra de corresponder alguém de verdade. Apenas representa o ideal da mulher amada inalcançável – nítido traço de reaproveitamento do neoplatonismo renascentista.
Na épica, Cláudio escreveu o poemeto “Vila Rica”, poema inspirado nas européias clássicas, que se trata da penetração bandeirante, de descoberta das minas.
No “Prólogo ao leitor” que antecede os sonetos de Cláudio, lemos:

“Não permitiu o Céu, que alguns influxos, que devi às águas do Mondego, se prosperassem por muito tempo: e destinado a buscar a pátria, que por espaço de cinco anos havia deixado, aqui entre a grossaria dos seus gênios, que menos pudera eu fazer, que entregar-me ao ócio, e sepultar-me na ignorância! Que menos, do que abandonar as fingidas ninfas destes rios, e no centro deles adorar a preciosidade daqueles metais, que têm atraído a este clima os corações de toda a Europa! Não são estas as venturosas praias da Arcádia, onde o som das águas inspirava a harmonia dos versos. Turva e feia a corrente destes ribeiros, primeiro que arrebate as idéias de um poeta, deixa ponderar a ambiciosa fadiga de minerar a terra que lhes tem pervertido as cores”.

Aqui está formulado claramente o drama do poeta, que teve de retornar à pátria e reafinar a lira conforme a “grossaria dos seus gênios”. Os rios daqui, turvos e feios, não são as “venturosas praias de Portugal”. A atividade da mineração, então sustentáculo da economia em Minas Gerais, implicava por certo um arruinamento da paisagem. O Brasil, na condição de colônia de Portugal, adquiria para a sensibilidade aguçadíssima de Cláudio Manuel da Costa o ar de uma terra devastada, para a qual se encaminhavam levas de europeus, especialmente portugueses, com a ambição de enriquecer o mais rápido possível. Isso mais o fato de que a capitania de Minas Gerais tinha de repassar para a Metrópole a maior parte de sua riqueza na forma de impostos indicavam ser a região mero lugar de passagem, enfeado como costumam ser aqueles sítios voltados apenas para o lucro e nos quais a beleza é vista como inútil. Minas Gerais era um pouco a Serra Pelada daquele período.
Se a convenção pastoril e o cenário campestre previstos na literatura culta da época pareciam, num primeiro momento, apropriados para um lugar em que, ao contrário da Inglaterra, não houvera revolução industrial, saíam ao mesmo tempo modificados na obra de Cláudio. Embora em certo sentido estivéssemos muito mais próximos da natureza do que os europeus, que já a idealizavam e a colocavam como instância a que a sensibilidade refinada deveria aspirar, nossa natureza era, por assim dizer, revirada e saqueada de uma maneira talvez mais visível, menos acobertada, do que a natureza nos países em que houvera industrialização maciça.
A paisagem em Cláudio é muito mais tosca do que amena, e às vezes pode ganhar cores mortiças, como no soneto que estamos analisando. Um soneto absolutamente sombrio, no qual o tempo parece ter se congelado também, tal como o pastor Fido.
A poesia de Cláudio é uma ponte entre o barroco e o árcade. Os dois estilos lhe marcaram a obra com exageração do barroco e a busca da simplicidade dos árcades. Conhecedor da técnica do verso, homem de boa biblioteca e extensa leitura, um intelectual, talvez até mentor de Tomás Antônio Gonzaga em assuntos intelectuais e jurídicos, e, sobretudo um grande poeta.
Segundo o parecer de alguns críticos nacionais, os seus sonetos constituem a melhor parte da obra literária desse poeta, não obstante a fatigante uniformidade que neles se nota; singularizam-nos, em todo caso, o tom algo camoniano do estilo e a comovente nostalgia em grande parte deles encontrável. Tipos da poesia arcaica portuguesa, com alguma mescla dos defeitos dos seiscentistas, ainda assim se impõem os sonetos do nosso malogrado poeta pela boa técnica da construção do verso e pela correção da linguagem.
Comentou o crítico João Ribeiro: “Por eles foi o precursor de Gonzaga, que o chamava de seu mestre. Mais tarde, Garrett o fez rival de Metastásio: a Academia de Ciências de Lisboa recomenda-o como clássico. Camilo C. Branco acha-o sob muitos aspectos superior a Bocage, outro mestre do soneto. Boutterweck, não sem exagero, considera-o o primeiro que restaurou o gosto transviado pela moda e pela decadência do seiscentismo. E se me compete opinar também aqui, digo com sinceridade que os sonetos de Cláudio em todas as literaturas latinas só têm superiores nos de Petrarca e nos de Camões”.

Os Sonetos

Para muitos críticos, a produção mais significativa de Cláudio Manuel está de fato nessas composições, que se dividem em pelo menos três séries:
1. A primeira descreve as angústias amorosas e a morte do pastor Fido;
2. os poemas da segunda série tratam do dilema rústico-civilizado;
3. e, ligado às duas séries anteriores, aparece a terceira com o tema da “tristeza da mudança das coisas em relação aos estados de sentimento”, conforme as palavras de Antonio Cândido.

Soneto I

“Para cantar de Amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento,
Ouvi pois o meu fúnebre lamento
Se é que de compaixões sois animados:

Já vos vistes que aos ecos magoados
Do trácio Orfeu parava o mesmo vento;
Da lira de Anfião ao doce acento
Se viram os rochedos abalados

Bem sei que de outros Gênios o destino,
Para cingir de Apolo a verde rama,
Lhes influiu na lira estro divino

O canto, pois, que a minha voz derrama,
Porque ao menos o entoa um Peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama”



O poema, um soneto — forma inventada pelo poeta italiano Petrarca — possui duas estrofes de quatro versos (com padrão de rima ABBA) e duas estrofes formadas por três versos (CDC, DCD respectivamente). Os versos foram compostos com dez sílabas poéticas, os chamados decassílabos que Camões utilizou para criar Os Lusíadas.
Na primeira estrofe o eu-lírico valendo-se de sua lira pede que a natureza que o circunda o ouça. Era comum na Grécia antiga que os poetas, ao comporem um poema lírico, os fizessem no intuito de que os versos fossem cantados e acompanhados dum instrumento musical, a lira; eis aí o porquê do nome poema lírico.
Nos versos da segunda estrofe, o clamor pela atenção é reforçado, visto que o sujeito-lírico vale-se de duas figuras míticas para convencer a natureza a ouvir o canto sobre os seus amores. Um deles é Orfeu, que desceu até o Hades (lar dos mortos) para buscar a esposa Eurídice; conta-se que ao chegar no Hades, Orfeu com sua canção conseguiu a permissão das criaturas do local para trazer a amada para o mundo dos vivos. Porém, ele não poderia olhar para trás antes de sair do Hades; ordem essa que Orfeu não obedece, sendo assim, ele não consegue trazer Eurídice à vida. Também é famosa a história de que Orfeu, por ser um poeta músico, podia atrair com sua lira animais ferozes, pássaros, árvores e rochedos. Anfion, entretanto era músico e poeta, com sua lira ergueu os muros de Tebas.
Na terceira estrofe, o poeta coloca-se numa posição de humildade ao dizer que outros Gênios — divindades da natureza adoradas como forças tutelares — são mais capazes de tocar com mais vigor, mais beleza poética; fatores esses que os ajudam a exaltar melhor Apolo, que é o deus da luz, das artes e da beleza.
Nos últimos versos, ele abandona um pouco o caráter humilde e diz que sua lira e seus versos também podem alcançar a fama.
De um modo geral, sente-se que o autor concebe o Brasil sob a perspicácia de seu caráter libertador, deixando emergir o seu descontentamento com a condição colonial. O segundo soneto do livro é exemplar para mostrar a visão do poeta mineiro acerca de sua terra natal:

Soneto II

“Leia a posteridade, ó pátrio Rio,
Em meus versos teu nome celebrado;
Por que vejas uma hora despertado
O sono vil do esquecimento frio:

Não vês nas tuas margens o sombrio,
Fresco assento de um álamo copado;
Não vês ninfa cantar, pastar o gado
Na tarde clara do calmoso estio.

Turvo banhando as pálidas areias
Nas porções do riquíssimo tesouro
O vasto campo da ambição recreias.

Que de seus raios o planeta louro
Enriquecendo o influxo em tuas veias,
Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.”



Os versos de natureza metalingüística que abrem o poema evidenciam a erudição do autor, uma vez que ele deixa bastante clara a sua condição de homem ilustrado. A princípio, esse recurso parece um tanto desumanizador, pois o poeta firma a sua intelectualidade numa época em que as condições coloniais eram pouco propensas para a divulgação do saber. No entanto, apesar da distância que separa o sujeito dos homens que ele descreve, a leitura integral do poema anula qualquer tipo de arrogância que poderia assinalar o autor.
O poema procura focar a ligação sentimental entre o sujeito e a sua terra. A estrutura de diálogo sob qual se desenvolve o poema já é um forte índice da intimidade e do afeto que une o homem ao ambiente onde vive. Com efeito, não há mais ninguém na cena a não ser esses dois elementos, como se o mundo do sujeito esbarrasse no espaço físico.
Essa intimidade também pode ser estruturalmente confirmada através do adjetivo pátrio (usado para designar o rio), já que esse termo não indica apenas a sua nacionalidade, mas também certa ligação paternal entre os indivíduos.
A propósito, é através da figura do rio que o poeta procura esboçar uma imagem do Brasil. A cena não poderia ser mais apropriada, pois o rio designa tanto um dado de base econômica (já que os minerais eram encontrados na margem dos rios), quanto um dado de ordem sentimental, uma vez que o rio transmite muito bem a idéia de serenidade almejada pelo autor.

Soneto XIV

“Quem deixa o trato pastoril, amado,
Pela ingrata, civil correspondência
Ou desconhece o rosto da violência,
Ou do retiro a paz não tem provado

Que bem é ver nos campos, trasladado
No gênio do Pastor, o da inocência!
E que mal é no trato, e na aparência
Ver sempre o cortesão dissimulado

Ali respira Amor sinceridade;
Aqui sempre a traição seu rosto encobre;
Um so trata a mentira, outro a verdade.

Ali não há fortuna que soçobre;
Aqui quanto se observa é variedade:
Oh! ventura do rico! Oh! bem do pobre!”



Eis aqui outro belo soneto do poeta, construído com decassílabos — versos compostos por dez sílabas — e com um padrão de rimas calcado na seguinte forma: ABBA, ABBA, nos quartetos (as duas primeiras estrofes que são compostas por quatro versos cada) e CDC, DCD nos dois tercetos (estrofes compostas por três versos).
Na primeira estrofe o poeta já deixa claro qual é o tema de seu soneto: a tranqüilidade do campo e a corrupção da vida urbana. Sendo assim, nos primeiros versos o eu-lírico, por meio duma metáfora, “o rosto da violência”, sintetiza o quão desastroso pode ser deixar o campo.E, é essa a situação do sujeito-lírico, ele adverte àqueles que planejam deixar o trato pastoril que na cidade os desgostos e as desilusões são inevitáveis.
Ora, percebe-se que estamos diante dum tema comum dos poetas neoclássicos (conhecidos também como arcades), que consiste basilarmente a valorização do campo, tal como fez Virgílio em Bucólicas, e no uso dos mitos greco-romanos. Assim sendo, o leitor percebe que a imagem do campo é idealizada, um local puro, inocente, onde as perturbações que acometem o viver não conseguem adentrar. Se o Amor pode respirar apenas no campo, logo pode-se dizer que ele é sufocado na cidade, devido a mentira e a hipocrisia.
Por fim, é interessante pensar como em pleno século XVIII, num ambiente colonial, as questões relativas à cidade, dum certo modo, já preocupavam eu-lírico. Ainda hoje a ideia do campo ser um local perfeito persiste em nossa cidade, ainda mais se levarmos em consideração às condições, muitas vezes ruins, que as metrópoles e mesmo outras cidades menores propiciam aos seus habitantes.


Soneto XIII

“Continuamente estou imaginando,
Se esta vida, que logro, tão pesada,
Há de ser sempre aflita, e magoada,
Se com o tempo enfim se há de ir mudando.

Em golfos de esperança flutuando
Mil vezes busco a praia desejada;
E a tormenta outra vez tão esperada
Ao pélago infeliz me vai levando.

Tenho já o meu mal tão descoberto,
Que eu mesmo busco a minha desventura;
Pois não pode ser mais meu desconserto.

Que me pode fazer a sorte dura
Se para não sentir seu golpe incerto,
Tudo o que foi paixão, é já loucura!”


Soneto XCVIII

“Destes penhascos fez a natureza
O berço em que nasci: oh! quem cuidara,
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!

Amor, que vence os tigres, por empresa
Tomou logo render-me; ele declara
Contra o meu coração guerra tão rara,
Que não me foi bastante a fortaleza.

Por mais que eu mesmo conhecesse o dano,
A que dava ocasião minha brandura,
Nunca pude fugir ao cego engano:

Vós, que ostentais a condição mais dura,
Temei, penhas, temei; que amor tirano,
Onde há mais resistência mais se apura.”



Repare, no soneto anterior, a angústia provocada pela constatação de que a vida é feita de sofrimento

Soneto XXII

“Neste álamo sombrio, aonde a escura
Noite produz a imagem do segredo;
Em que apenas distingue o próprio medo
Do feio assombro a hórrida figura;

Aqui, onde não geme, nem murmura
Zéfiro brando em fúnebre arvoredo,
Sentado sobre o tosco de um penedo
Chorava Fido a sua desventura.

Às lágrimas a penha enternecida
Um rio fecundou, donde manava
D’ânsia mortal a cópia derretida:

A natureza em ambos se mudava;
Abalava-se a penha comovida;
Fido, estátua da dor, se congelava.”


Esse é um dos cem sonetos que formam a primeira parte das Obras, publicadas em 1768, na cidade de Coimbra. A composição acima, uma das mais perfeitas do livro, pertence sem dúvida à primeira categoria.
No estudo da poesia arcádica, mesmo a realizada no Brasil, é imprescindível o conhecimento de temas e formas legados pela Antiguidade. Cláudio Manuel da Costa, conquanto tivesse nascido num país descoberto havia pouco mais de 200 anos, estudara em Coimbra, onde se familiarizou com o gosto e a norma literária européia então em voga e, portanto, com os argumentos e assuntos transmitidos pela tradição antiga. Em seus sonetos, são recorrentes os temas do desterro, do “carpe diem”, do “locus amoenus”, entre outros que circulavam na poesia neoclássica portuguesa. Contudo, como esperamos mostrar, as regras, motivos e procedimentos fornecidos pela tradição européia sofrerão uma inflexão na poesia de Cláudio Manuel da Costa, que exprimiu em sua obra o conflito típico do artista brasileiro, freqüentemente dividido entre o modelo europeu e as solicitações da realidade colonial.
Como aliar a experiência nacional a uma forma importada dos países centrais, onde se verifica um outro tipo de experiência histórica, constitui uma questão com a qual nossos intelectuais desde pelo menos o século XVIII têm de se haver.
No poema em questão, dispõem-se elementos para um quadro que poderia ser bucólico: álamo, arvoredo, Zéfiro, pastor, natureza. No entanto eles não configuram de fato o “lugar ameno” (locus amoenus), a tranqüilidade idílica, como vemos na poesia pastoril do poeta latino Virgílio (70-19 a.C.) e na poesia pastoril praticada no século XVIII europeu. Por sobre tais elementos cai a sombra da melancolia do pastor Fido. Afinal, o álamo é sombrio, o arvoredo é fúnebre, e não se ouve nenhum gemido de um suave zéfiro na escura noite. O ar está parado, como que petrificado, talvez porque nele esteja sendo gestada a imagem do segredo, conforme a expressão do poeta. Mas que segredo é esse? Para tentar responder a essa pergunta, é necessário insistir na imagem do pastor melancólico. Em vez de tomar parte na confraternização com a natureza, na sociabilidade amena entre os pastores, ele aparece recuado e solitário:

“Sentado sobre o tosco de um penedo
Chorava Fido a sua desventura.”


O crítico literário Sérgio Alcides considera a posição de estar “sentado sobre o tosco de um penedo” o avesso do estilo “sub tegmini fagi”, isto é, do estilo que caracteriza a posição de quem está “à sombra de uma faia”, recostado a uma aprazível árvore. Essa imagem se tornou modelar desde a abertura da Bucólica I, de Virgílio. Trata-se do paradigma da vida amena e natural, que comunga com a natureza e se opõe ao artificialismo da vida urbana. No entanto o pastor de Cláudio não está suavemente apoiado num tronco de faia; está sentado “sobre o tosco de um penedo”, isto é, sobre a superfície não lavrada, não polida de algo já por si bastante duro, bastante rústico. Além disso, ele não está em recreio, mas antes lamenta as suas desventuras e chora copiosamente.
Já é possível constatar algumas dissonâncias nesse soneto em relação ao que seria a convenção da poesia arcádica européia: as imagens da escuridão e a melancolia. Esta tira o pastor do convívio harmonioso com os homens e aquelas impedem a pintura de um quadro realmente bucólico, pois este exigiria tons mais claros e suaves. Dois ideais prezados pelo Arcadismo são, portanto, contrariados nesse poeta que era dos mais disciplinados e versados nos preceitos metropolitanos: o campo como lugar de harmonia e felicidade e a visão simplificada dos homens e das relações sociais. Ora, num soneto, “(...) Em que apenas distingue o próprio medo / Do feio assombro a hórrida figura(...)”, é justo dizer que a natureza não é espaço de serenidade, mas de imagens horripilantes. Do mesmo modo, a presença poderosa da melancolia indica precisamente o contrário de uma simplificação das relações humanas. Para a alma melancólica o burburinho humano pode trazer um terrível desconforto. Na verdade, as imagens sombrias do poema são projeções de um eu que não vê nem mesmo na natureza conforto para seus flagelos. Não estamos, portanto, diante da harmonia com a natureza e os homens tal como é estilizada em Virgílio e mesmo em tantos poetas europeus contemporâneos de Cláudio. Estamos diante de um paradoxal pastor reflexivo, pois a melancolia costuma se associar à reflexão pelo ensimesmamento continuado.
Por que é paradoxal a figura de um “pastor reflexivo”? Ora, porque a convenção pastoril servia ao ideal de naturalidade, que pressupunha uma sociabilidade mais agradável entre os homens, e a melancolia introduz uma nota dissonante, que impede a formação dessa feliz comunidade. Os pastores de Cláudio não são muito sociáveis e afeitos ao trato com as pessoas, pois muitas vezes se afastam das brincadeiras e das festas campestres e se isolam num canto, sentando-se sobre um penedo, sobre uma pedra, e desfiando os seus infortúnios. Isso indica que as relações humanas foram perturbadas.
Nessa poesia vemos um topos característico da literatura culta européia: a metamorfose. A transformação de homens em plantas, minerais e animais, e vice-versa, era um lugar-comum transmitido pela literatura greco-romana. Mas em Cláudio, assim como a figura do pastor foge um tanto às normas estabelecidas no Arcadismo, assim também a metamorfose parece adquirir uma feição singular. Vejamos as últimas estrofes do poema analisado:

“Às lágrimas a penha enternecida
Um rio fecundou, donde manava
D'ânsia mortal a cópia derretida;

A natureza em ambos se mudava;
Abalava-se a penha comovida;
Fido, estátua da dor, se congelava.”


A pedra, comumente ligada à idéia de fixidez, de alicerce, daquilo que não se altera, é aqui, no entanto, abalada. Enquanto Fido chora a sua desventura e tende para a petrificação, tal é a dor que nele se desata, a rocha, comovida, tende a ganhar a mobilidade própria dos homens. Fido se congela, e o mineral se derrete. Daí o poeta dizer: “A natureza em ambos se mudava”. O pastor se mineraliza, e a pedra se humaniza, numa manifestação do abalo que tomou conta dos elementos da paisagem. Ocorre, portanto, metamorfose em mão dupla.
Ora, um pastor transmudado em mineral indica que o ideal arcádico de uma idade de ouro, na qual se restabeleceria a convivência pacífica entre os homens, foi deixado de lado. Pois aqui se regride a um estágio anterior ao humano, a um estágio anterior à sociabilidade.
Por fim, qual será “a imagem do segredo”? O poema não configuraria, todo ele, essa imagem, arrematada por uma espantosa metamorfose? Não é possível, neste espaço, responder a essa questão de maneira satisfatória, pois haveria muito mais a dizer dessa magnífica composição, em que a dicção clássica por vezes é crispada por procedimentos barrocos, como o hipérbato. De todo modo, procuramos levantar ao menos alguns aspectos que nos ajudem a refletir sobre o que constitui o segredo dessa grande poesia.
O Prof. Eugênio Werneck escreveu em sua “Antologia Brasileira”: “Almeida Garret fá-lo rival de Metastásio; e Camilo Castelo Branco considera-o, sob muitos aspectos, superior a Bocage, o consagrado mestre do soneto em português”.
Muito embora bebesse nas fontes arcádicas, sua poesia esta cheia de paisagens brasileiras. E seu lirismo é rico de beleza, elegante e sonoro.


Nize? Nize? onde estás? Aonde espera
achar-te uma alma que por ti suspira,
se quanto a vista se dilata e gira,
tanto mais de encontrar-te desespera?

Ah! se ao menos teu nome ouvir pudera
entre esta aura suave, que respira!
Nize, cuido que diz; mas é mentira.
Nize, cuidei que ouvia; e tal não era.

Grutas, troncos, penhascos da espessura,
se o meu bem, se a minha alma em vós se esconde.
mostrai, mostrai-me a sua formosura!

Nem ao menos o eco me responde!
Ah! como é certa a minha desventura!
Nize? Nize? onde estás? aonde? aonde?



Mais um soneto desse grande poeta:


Não se passa, meu bem, na noite e dia,
uma hora só, que a mísera lembrança
te não tenha presente na mudança
que fez, para meu mal, minha alegria.

Mil imagens debuxa a fantasia,
com que mais me atormenta e mais me cansa:
- pois se tão longe estou de uma esperança,
que alívio pode dar-me esta porfia!

Tirano foi comigo o fado ingrato,
que crendo, em ti roubar, pouca vitória,
me deixou para sempre o teu retrato:

eu me alegrara da passada glória,
se, quando me faltou teu doce trato,
me faltara também dele a memória!


A poesia de Cláudio Manuel da Costa, equilibrada entre o Barroco e a Arcádia, com muitas auras do quinhentismo, atinge um nível bastante elevado:


Ai, Nize amada! se este meu tormento,
se estes meus sentidíssimos gemidos
lá no teu peito, lá nos teus ouvidos
achar pudessem brando acolhimento;

como alegre em servir-te, como atento
meus votos tributara agradecidos!
Por séculos de males bem sofridos
trocara todo o meu contentamento.

Mas se na incontrastável pedra dura
do teu rigor não há correspondência.
para os doces afetos de ternura;

cesse de meus suspiros a veemência;
que é fazer mais soberba a formosura
adorar o rigor da resistência.


NOTA - O soneto, dos mais musicais de Cláudio, ostenta figuras de palavras e aliterações, sábia distribuição de tônicas e versos amplamente sugestivos, como os dois últimos da segunda quadra.
(Péricles Eugênio da Silva Ramos)

Dele, outro expressivo soneto (XXXII):


Se os poucos dias, que vivi contente,
foram bastantes para o meu cuidado,
que pode vir a um pobre desgraçado,
que a idéia de seu mal não acrescente!

Aquele mesmo bem, que me consente,
talvez propício, meu tirano fado,
esse mesmo me diz que o meu estado
se há de mudar em outro diferente.

Leve, pois, a fortuna os seus favores;
eu os desprezo já; porque é loucura
comprar a tanto preço as minhas dores:

se quer que me não queixe a sorte escura,
ou saiba ser mais firme nos rigores,
ou saiba ser constante na brandura.



NOTA - "O Poeta receia o próprio bem futuro, pois a lembrança deste o atormentará depois".
(Péricles Eugênio da Silva Ramos)

No soneto que se segue, "o humor do poeta enegrece a natureza":


Que tarde nasce o Sol, que vagaroso!
Parece que se cansa de que a um triste
haja dê aparecer: quanto resiste
a seu raio este sítio tenebroso!

Não pode ser que o giro luminoso
tanto tempo detenha: se persiste
acaso o meu delírio! se me assiste
ainda aquele humor tão venenoso!

Aquela porta ali se está cerrando;
dela sai um pastor: outro assobia,
e o gado para o monte vai chamando.

Ora, não há mais louca fantasia!
Mas quem anda, como eu, assim penando,
não sabe quando é noite, ou quando é dia.


Finalmente, mostramos este soneto onde "a natureza toda se abala com a morte de Nize. Tal solidariedade entre pessoas e seres, várias vezes explorada por Cláudio, assume neste soneto belos tons"


Parece, ou eu me engano, que esta fonte
de repente o licor deixou turvado;
o céu, que estava limpo, e azulado,
se vai escurecendo no horizonte:

Por que não haja horror, que não aponte
o agouro funestíssimo, e pesado,
até de susto já não pasta o gado;
nem uma voz se escuta em todo o monte.

Um raio de improviso na celeste
região rebentou: um branco lírio
da cor das violetas se reveste;

será delírio! não, não é delírio.
Que é isto, pastor meu? que anúncio é este?
Morreu Nize (ai de mim), tudo é martírio.


Já rompe, Nise, a matutina aurora
O negro manto, com que a noite escura,
Sufocando do sol a face pura,
Tinha escondido a chama brilhadora.

Que alegre, que suave, que sonora,
Aquela fontezinha aqui murmura!
E nestes campos cheios de verdura
Que avultado o prazer tanto melhora!

Só minha alma em fatal melancolia,
Por te não poder ver, Nise adorada,
Não sabe inda, que coisa é alegria;

E a suavidade do prazer trocada,
Tanto mais aborrece a luz do dia,
Quanto a sombra da noite mais lhe agrada.





Senhora (José de Alencar)

Romantismo

Iniciado em 1836 com a publicação de Suspiros Poéticos e Saudades de Gonçalves de Magalhães e com a Revista Niterói – Brasiliense, o Romantismo Brasileiro se divide em poesia, prosa e teatro.
Na poesia, Manuel Bandeira dividiu o período em três gerações: a primeira, que se estende até meados do século XIX tem a preocupação com a idealização da pátria e da natureza brasileiras; a segunda, que se estende até cerca de 1870 é chamada de ‘ultrarromântica’, pela presença da morbidez e do pessimismo. A terceira, iniciada por volta de 1870 é a condoreira, ou social, por defender a abolição da escravidão.
No entanto, é no Romantismo que tem início a prosa artística brasileira (o Romance Romântico). A data inicial é convencionada em 1844, com a publicação da obra A Moreninha de Joaquim Manuel de Macedo, apesar de, no ano anterior termos tido a publicação da obra O Filho do Pescador, de Teixeira e Souza.
José de Alencar é, na prosa romântica brasileira, sem sombra de dúvida, a figura de maior destaque. Ideólogo do nacionalismo, Alencar buscou formar uma “alma” brasileira através de suas obras, sendo atribuída a ele a criação de uma ‘summa romanesca”. São importantíssimas para a Literatura personagens como Peri, Iracema, Ceci, Martim Soares Moreno, Fernando Seixas, Paulo, Lucíola e Aurélia Camargo, esta última, antecedendo características realistas em virtude da análise de seu comportamento ao agir de forma premeditada para reconquistar seu grande amor e fazê-lo valer a pena.

José de Alencar – Biografia
Nascido em Mecejana, Ceará, em 1829, filho de um político do Império, foi autor de Literatura, Teatro, além de filósofo do Direito. Com um ano a família muda-se para o Rio de Janeiro, pois o pai do escritor havia sido eleito Senador do Império. Em 1836 o pai de José de Alencar é nomeado Governador do Ceará e o futuro escritor retorna a Fortaleza onde convive com a natureza exuberante de sua terra natal. Com 15 anos Alencar parte para São Paulo, onde faz os preparatórios para a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Como advogado, é um dos principais filósofos do Direito em sua época, também dedicando-se à política e à Literatura.
No Rio de Janeiro, em 1854, a convite de Francisco Otaviano, assume uma coluna no jornal Correio Mercantil, chamada “Ao correr da pena”, uma espécie de resenha do que fosse mais importante no Rio de Janeiro, em um estilo leve e claro. Por conta disso, é convidado a assumir o posto de redator-chefe do jornal O Diário do Rio de Janeiro, onde publicará os primeiros folhetins, como o estrondoso sucesso chamado O Guarani (1857), tão importante que acaba sendo transformada em Ópera pelo compositor brasileiro Carlos Gomes. Este também é um dos períodos mais prolíficos de publicação de peças teatrais, como Verso e Reverso, Demônio Familiar, O Crédito e As asas de um Anjo. O Crédito foi um fracasso e As asas de um Anjo foi censurada por imoralidade, porque retratava a prostituição e a regeneração da mulher. Isso desestimulará o escritor a continuar a escrever teatro.
Voltando à política, foi Deputado Federal e Ministro da Justiça por dois anos (entre 1868 e 1870). Desentende-se com o Imperador por questões políticas quando é preterido para o cargo de Senador, vindo a se afastar da vida pública. Este afastamento permitiu a ele a estruturação de um programa literário que englobasse todos os aspectos da sociedade brasileira que estava sendo organizada. Em seu sítio na Tijuca, escreveu os romances que viriam a torná-lo um dos escritores centrais da gênese de nossa formação cultural e literária.
Sua obra é da mais alta significação nas letras brasileiras, não só pela seriedade, ciência e consciência técnica e artesanal com que a escreveu, mas também pelas sugestões e soluções que ofereceu, facilitando a tarefa da nacionalização da literatura no Brasil e da consolidação do romance brasileiro, do qual foi o verdadeiro criador. Sendo a primeira figura das nossas letras, foi chamado “o patriarca da literatura brasileira”. Sua imensa obra causa admiração não só pela qualidade, como pelo volume, se considerarmos o pouco tempo que José de Alencar pôde dedicar-lhe numa vida curta. Faleceu no Rio de Janeiro, de tuberculose, aos 48 anos de idade, no dia 12 de dezembro de 1877.

Estilo

Uma das principais características do autor é o seu estilo “rebuscado”. José de Alencar tem uma marcante preferência pelas descrições eivadas de adjetivação exagerada São notáveis no escritor os períodos extensos e minuciosamente descritivos sobre a flora e a exuberância da natureza e do homem natural, além dos exageros de elogios às mulheres, verdadeiras heroínas românticas.
Seus romances indianistas podem ser inseridos nos romances de aventura do século XIX, inspirados nos feitos dos heróis medievais. Cada capítulo termina com uma situação de suspense que se resolverá no seguinte, para se complicar mais à frente.
Já nas obras urbanas, figuram os costumes, a moda, as diversões, as relações humanas de um universo cortesão, onde a mulher transita como figura central, admirada por seus dotes e seu comportamento. Redimida do pecado por um grande amor que a purifica e sublima.
Alencar não destoa do Romantismo em voga. A sua visão de mundo é baseada na emoção, e o mundo urbano, com seus problemas políticos e econômicos, o aborrece, por isso foge para o passado; escapa para os lugares selvagens. Suas obras procuram retratar um Brasil e personagens mais ideais do que reais, mais como ele gostaria que moralmente fossem (românticos e moralistas) do que objetivamente eram (realistas). Senhora é um romance de características definidas de forma romântica, mas que já traduz uma temática realista: a crítica ao casamento burguês.
O conflito amoroso entre os protagonistas nasce desse choque entre os sentimentos e o interesse econômico. Aurélia Camargo é uma mulher de personalidade forte, carregada de sentimentalismo romântico. Daí sua contradição, sua personalidade marcada por extremos: dá maior valor aos sentimentos, mas vale-se do dinheiro para atingir seu objetivo de obter o grande amor de sua vida, Fernando Seixas. Dessa forma, o dinheiro acaba impondo o valor burguês que lhe era atribuído na sociedade do século XIX. A realização amorosa só se cumpre depois de Aurélia vencer a aparente dualidade que parece conduzi-la á dúvida quanto às intenções de Fernando Seixas.

A Obra

Apresentação do autor
Ao Leitor
Este livro, como os dois que o precederam, não são da própria lavra do escritor, a quem geralmente os atribuem. A história é verdadeira; e a narração vem de pessoa que recebeu diretamente, e em circunstâncias que ignoro, a confidência dos principais atores deste drama curioso.
O suposto autor não passa rigorosamente de editor. É certo que tomando a si o encargo de corrigir a forma e dar-lhe um lavor literário, de algum modo apropria-se não a obra mas o livro.
Em todo o caso, encontram-se muitas vezes nestas páginas, exuberâncias de linguagem e afoutezas de imaginação, a que já não se lança a pena sóbria e refletida do escritor sem ilusões e sem entusiasmos.
Tive tentações de apagar alguns desses quadros mais -plásticos ou pelo menos de sombrear as tintas vivas e cintilantes. Mas devia eu sacrificar a alguns cabelos grisalhos esses caprichos artísticos de estilo, que talvez sejam para os finos cultores da estética, o mais delicado matiz do livro?
E será unicamente fantasia de colorista e adorno de forma, o relevo daquelas cenas, ou antes de tudo serve de contraste ao fino quilate de um caráter?
Há efetivamente um heroísmo de virtude na altivez dessa mulher, que resiste a todas as seduções, aos impulsos da própria paixão, como ao arrebatamento dos sentidos.
(J. de AL).

Análise

Narrado em terceira pessoa por um narrador-observador, o romance Senhora foi publicado em 1875 e pode ser considerado uma das obras-primas de seu autor e uma das principais da Literatura Brasileira. Uma vez que trata do tema do casamento burguês, ou seja, baseado no interesse financeiro, pode ser considerada precursora do Realismo ou pré-realista.
É uma das três obras (além de Lucíola e Diva), que Alencar classificou como “perfil de mulher”, já que concentra na mulher o papel mais importante dentro da sociedade de seu tempo. Aurélia é a protagonista do romance, uma jovem mulher dividida entre o amor e o ódio, o desejo e o desprezo por Fernando Seixas, o homem que ama. Essa personalidade dividida se apresenta a partir do rompimento do noivo, Fernando Seixas.
A personagem Aurélia Camargo é idealizada como uma rainha, como uma heroína romântica, pelo narrador. De "régia fronte, coroada de diadema de cabelos castanhos, de formosas espáduas", essa personagem, no entanto, é ao mesmo tempo "fada encantada" e "ninfa das chamas, lasciva salamandra". Ao estereótipo da "mulher-anjo" romântica, o narrador acrescenta, assim, um elemento demoníaco, elemento que, em vez de explicitar, deixa sugerido, "sob as pregas do roupão de cambraia que a luz do sol não ilumina", e também "sob a voz bramida, o gesto sublime, escondendo o frêmito que lembrava silvo de serpente" ou quando "o braço mimoso e torneado faz um movimento hirto para vibrar o supremo desprezo". Tal maneira de caracterizar a personagem - pelos elementos exteriores - é típica do narrador observador. Tal caracterização, por sua vez, humaniza a personagem, afastando-a dos padrões românticos, e acrescentando-lhe traços realistas.
O conflito entre os protagonistas é marcado pela evidente critica de uma sociedade que valoriza mais a aparência e o dinheiro que os sentimentos humanos, a idealização das personagens reflete o universo romântico presente na obra. O desenlace configura, por si só, a vitória do Romantismo em Alencar sobre a possibilidade realista.
Para melhor entendermos a obra, devemos perceber as interações do artista que a criou. Alencar acreditava sinceramente na vitória do homem na reforma de si mesmo e da sociedade. Não havia nele ainda o traço de pessimismo profundo e de ceticismo que aparecem em Machado de Assis.
Em Alencar, as personagens, divididas entre o ódio e o perdão, a necessidade financeira e os apelos do coração, vêm vencer sempre os sentimentos mais nobres, como se pode observar também na construção do romance Lucíola, apesar do final trágico. Em ambos os romances a premente necessidade do dinheiro, veículo central de uma sociedade burguesa, obriga personagens a trocarem seus sentimentos por dinheiro.
O grande vilão, o antagonista, é sempre a sociedade e seus hábitos doentios e seus costumes imorais. Se é essa a pretensão do autor, o seu recado para a sociedade de seu tempo, devemos classificar Senhora com um “romance de costumes”. Se o cenário das personagens é o Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, podemos também considerá-lo como um romance urbano com traços de psicologismo e critica social.

Foco narrativo - O romance é narrado em terceira pessoa por um narrador onisciente, ou seja, que tudo sabe sobre as personagens, penetrando em seus pensamentos e em sua alma. Esse narrador é também intruso, já que interfere em vários momentos, apresentando-se ao leitor (digressões).
Observe como exemplo este trecho na página 27:
“Opôs-se formalmente Aurélia; e declarou que era sua intenção viver em casa própria, na companhia e D. Firmina Mascarenhas.
- Mas atenda, minha menina, que ainda é menor.
- Tenho dezoito anos.
- Só aos vinte e um é que poderá viver sobre si e governar-se.
- É a sua opinião? Vou pedir ao juiz que ele há de atender-me.
A vista desse tom positivo, o Lemos refletiu, e julgou mais prudente não contrariar a vontade da menina. Aquela idéia do pedido ao juiz para remoção da tutela não lhe agrada. Pensava ele que às mulheres ricas e bonitas não faltam protetores de influência.”

Tempo - O tempo é cronológico, tomando como base o século XIX, durante o Segundo Império. Entretanto, não há linearidade, já que a história é contada a partir de flash-back.
Espaço - O espaço central da narrativa é o Rio de Janeiro.
Personagens - As personagens são bem construídas e já apresentam certa profundidade psicológica. Ao contrário de várias personagens românticas, não constituem meros tipos sociais, já que são capazes de atitudes inesperadas.

• Fernando Seixas: Jovem estudante de Direito, abandona o curso quando seu pai morre e deixa uma pequena herança para a família. Veste-se bem e aprecia a vida em sociedade. Como gasta, além de sua parte da herança, a da irmã, a falta de dinheiro o conduz a acreditar que a única maneira de evitar a ruína final é casando-se com um bom dote. Envolvido pelo amor de Aurélia, chega a pensar em abandonar os hábitos caros, mas acaba percebendo que não consegue viver longe da corte. Depois do casamento por interesse, é humilhado, arrepende-se e consegue resgatar o dinheiro que recebeu de Aurélia.
“Filho de um empregado público e órfão aos dezoito anos, Seixas foi obrigado a abandonar seusestudos na Faculdade de São Paulo pela impossibilidade em que se achou sua mãe de continuar-lhe a mesada.
Já estava no terceiro ano, e se a natureza que o ornara de excelentes qualidades lhe desse alguma energia a força de vontade, conseguiria ele vencendo pequenas dificuldades, concluir o curso; tanto mais quanto um colega e amigo, o Torquato Ribeiro lhe oferecia hospitalidade até que a viúva pudesse liquidar o espólio.
Mas Seixas era desses espíritos que preferem a trilha batida, e só impelidos por alguma forte paixão, rompem com a rotina. Ora, a carta de bacharel não tinha grande solução para sua bela inteligência mais propensa à literatura e ao jornalismo.
Cedeu pois à instância dos amigos de seu pai que obtiveram encartá-lo em uma secretaria como praticante. Assim começou ele essa vegetação social, em que tantos homens de talento consomem o melhor da existência numa tarefa inglória, ralados por contínuas decepções.
Continuando a carreira de empregado público, que lhe impunha a necessidade, Seixas buscou para seu espírito superior campo mais brilhante e encontrou-o na imprensa.
Admitido à colaboração de uma das folhas diárias da Corte em princípio como simples tradutor, depois como noticiarista, veio com o tempo a ser um dos escritores mais elegantes do jornalismo fluminense. Não diremos festejado, como agora é moda, porque nesta nossa terra os cortejos e aplausos rastejam a mediocridade feliz.
O pai de Seixas deixara seu escasso patrimônio complicado com uma hipoteca, além de várias dívidas miúdas. Depois de uma difícil e morosa liquidação, com que a viúva achou-se embaraçada, pôde-se apurar a soma de doze contos de réis, afora uns quatro escravos.
Partilhados estes bens, D. Camila, a mãe de Seixas, por conselho de amigos, pôs o dinheiro a render na Caixa Econômica, donde ia tirando os juros semestrais, com que acudia aos gastos da casa, ajudada dos aluguéis de dois escravos e também de algumas costuras dela e das duas filhas.
Fernando quis concorrer com seu ordenado para a despesa mensal, mas tanto a mãe, como as irmãs, recusaram. Sentiam elas ao contrário não poder reservar alguma quantia para acrescentar aos mesquinhos vencimentos, que mal chegavam para o vestuário e outras despesas do rapaz.
No geral conceito, esse único filho varão devia ser o amparo da família, órfã de seu chefe natural.
Não o entendiam assim aquelas três criaturas, que se desviviam pelo ente querido. Seu destino resumia-se em fazê-lo feliz; não que elas pensassem isto, e fossem capaz de o exprimir; mas faziam-no.
Que um moço tão bonito e prendado como o seu Fernandinho se vestisse no rigor da moda e com a maior elegância; que em vez de ficar em casa aborrecido procurasse os divertimentos e a convivência dos camaradas; que em suma fizesse sempre na sociedade a melhor figura; era para aquelas senhoras não somente justo e natural, mas indispensável.
• Aurélia Camargo: Moça pobre. Aurélia é decente e apaixonada por Fernando Seixas. A decepção amorosa transforma-a num mulher vingativa e fria, mas que não consegue disfarçar seu verdadeiro sentimento por Seixas. Recebendo uma herança, vai para a corte atrás de seu amor. Vê-se dividida entre sentimentos contraditórios até o final do romance. O amor parece ser sua salvação, redimindo-a de perder o homem que ama por causa de seu orgulho.
• Dona Emília: Viúva, mãe de Aurélia. Mulher honesta e séria, que amargou imenso sofrimento por causa de seu amor por Pedro Camargo. Foi considerada perdida, pois se apaixonou e entregou a Pedro Camargo.
• Pedro Camargo: Pai de Aurélia, filho natural de um rico fazendeiro do interior de São Paulo, por quem nutria grande medo. Não consegue assumir e morre à mingua por não conseguir confessar seu casamento contra a vontade do pai.
• Lourenço Camargo: Avô de Aurélia. Pai de Pedro. Homem duro e rústico, mas que procura ser justo depois que descobre a existência do casamento do filho.
• D. Firmina: Parente distante de Aurélia e que lhe serve de companhia quando fica rica.
• Tio Lemos: Tio de Aurélia. “Velho de pequena estatura, não muito gordo, mas rolho e bojudo como um vaso chinês. Apesar de seu corpo rechonchudo tinha certa vivacidade buliçosa e saltitante que lhe dava petulância de rapaz, e casava perfeitamente com seus olhinhos de azougue.” Foi escolhido por Aurélia como tutor, porque a moça podia dominá-lo facilmente.

Estrutura da obra

Senhora é um romance dividido em quatro partes que não obedecem uma ordem cronológica, isto é, a primeira parte (O Preço), narra os episódios atuais, enquanto que a segunda parte (Quitação), fala-nos do passado de Aurélia, seguem as partes: Posse e Resgate. A narrativa é feita por um narrador que parece penetrar na alma de Aurélia Camargo para transmitir suas confidências mais intimas. Este tipo de análise já antecipa características que aparecerão em Machado de Assis e no realismo.
Esses títulos contrariam ostensivamente o espírito de uma história de amor, como efetivamente é o romance Senhora. Mas, como se trata de um amor contrariado pelos hábitos sociais, fica clara a idéia de que os títulos foram assim escolhidos para expor a metáfora contida no livro. Eles explicitam, em tom caricatural, a idéia de que a compra efetuada por Aurélia é um símbolo do casamento por interesse, muito corrente na época, mas sempre disfarçado por elegantes e frágeis encenações sociais.

Enredo

Primeira parte - O preço

Aurélia Camargo aparece como uma “nova estrela”, que “raiou no céu fluminense”. Jovem, bela, extremamente rica, vive cercada de admiradores, a quem trata com um desprezo satânico, avaliando cada um pelo preço de sua cotação no rol dos que pretendem contrair com ela a empresa nupcial.
“Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela.
Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe disputou o cetro; foi proclamada a rainha dos salões.
Tornou-se a deusa dos bailes; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em disponibilidade.
Era rica e formosa.
Duas opulências, que se realçam como a flor em vaso de alabastro; dois esplendores que se refletem, como o raio de sol no prisma do diamante.
Quem não se recorda da Aurélia Camargo, que atravessou o firmamento da Corte como brilhante meteoro, e apagou-se de repente no meio do deslumbramento que produzira o seu -fulgor?
Tinha ela dezoito anos quando apareceu a primeira vez na sociedade. Não a conheciam; e logo buscaram todos com avidez informações acerca da grande novidade do dia.”
A extrema graça e a sensualidade, a inteligência brilhante, a nobreza de alma que se percebem em Aurélia não condizem com a ironia, o sarcasmo e o escárnio presentes em seus atos, principalmente quando relacionados ao dinheiro.
Morando num palacete em Laranjeiras em companhia de uma parenta afastada, D. Firmina Mascarenhas, e tendo como tutor o tio, Senhor Lemos, é na verdade Aurélia quem decide a sua vida, apesar de ter entre l8 e l9 anos.
A principal ação desta primeira parte do romance começa quando Aurélia pede ao tio que ofereça ao jovem Fernando Seixas, recém-chegado na corte após uma longa viagem ao Nordeste, a sua mão em casamento. Entretanto, uma aura de mistério cobre o pedido, pois Fernando não deve saber a identidade da pretendente, além disso, a quantia do dote proposto deve ser irrecusável: cem contos de réis ou mais, se necessário.
“Quem observasse Aurélia naquele momento, não deixaria de notar a nova fisionomia que tomara o seu belo semblante e que influía em toda a sua pessoa.
Era uma expressão fria, pausada, inflexível, que jaspeava sua beleza, dando-lhe quase a gelidez da estátua. Mas no lampejo de seus grandes olhos pardos brilhavam as irradiações da inteligência.
Operava-se nela uma revolução. O princípio vital da mulher abandonava seu foco natural, o coração, para concentrar-se no cérebro, onde residem as faculdades especulativas do homem.
Nessas ocasiões seu espírito adquiria tal lucidez que fazia correr um calafrio pela medula do
Lemos, apesar do lombo maciço de que a natureza havia forrado no roliço velhinho o tronco do sistema nervoso.
Era realmente para causar pasmo aos estranhos e susto a um tutor, a perspicácia com que essa moça de dezoito anos apreciava as questões mais complicadas; o perfeito conhecimento que mostrava dos negócios, e a facilidade com que fazia, muitas vezes de memória, qualquer operação aritmética por muito difícil e intrincada que fosse.
Não havia porém em Aurélia nem sombra do ridículo pedantismo de certas moças que, tendo colhido em leituras superficiais algumas noções vagas, se metem a tagarelar de tudo.”
A habilidade mercantil de Lemos, que chega a ser caricata, e a péssima situação financeira de Fernando - moço elegante, mas pobre, que gastou o espólio deixado pelo pai e que precisava restituí-lo à família para a compra do enxoval da irmã - fazem com que deem certo os planos de Aurélia.
Fernando, envergonhado por aceitar um casamento de conveniência, é apresentado à futura esposa e descobre ser ela uma antiga paixão, a maior de sua vida, que abandonara pelo dote de trinta contos de réis de outra moça, Adelaide Amaral, filha de um empregado da Alfândega.
Assim, Fernando acredita estar unido amor e fortuna quando se casa com Aurélia, que nada demonstra de suas intenções até consumar-se a cerimônia.
Na noite de núpcias, recolhidos ao rico aposento das Laranjeiras destinado aos noivos, Aurélia desacata Fernando e a “comédia” daquele casamento, afirmando ser ela uma mulher traída e ele um homem vendido... Termina, assim, a primeira parte do romance.

Segunda parte – Quitação
Aqui há um “flash-back”, um retorno a acontecimentos anteriores da vida de ambos os protagonistas, o que explica ao leitor o procedimento cruel de Aurélia em relação a Fernando.
Dois anos antes do casamento singular, vivia Aurélia com a mãe, pobre, enferma e viúva, D. Emília Camargo.
A história desta mulher é trágica e exemplarmente romântica: quando moça, apaixonara-se por um estudante, Pedro de Souza Camargo, filho ilegítimo de um rico fazendeiro, que por não ter sido oficialmente reconhecido pelo pai é recusado como pretendente de Emília.
Ela, então, abandona a família e secretamente casa-se com Pedro, passando a ser considerada morta pelos parentes, que ignoravam a união.
Lourenço Camargo, ao receber notícia de que o filho morava com uma rapariga, manda chamá-lo e o prende na fazenda. Pedro era fraco e não foi capaz de relatar ao pai que se casara. Vivem, então, os esposos, separados e marginalizados por doze anos, recebendo Emília eventualmente a visita de Pedro, a quem tudo perdoava pelo amor e com quem teve dois filhos: Emílio e Aurélia.
Quando Lourenço Camargo tenta forçar o casamento de Pedro com uma rica herdeira, este se desespera e é acometido de uma febre cerebral, que o mata. Emília escreve ao sogro, que sem a prova do casamento não acredita em suas palavras, mandando-lhe de forma rude e seca um conto de réis
O irmão de Aurélia, Emílio, frágil e pouco desenvolto para o trabalho, de espírito 'curto e tardio' e irresoluto como o pai, consegue a profissão de caixeiro de um corretor de fundos. No entanto, é Aurélia, viva e inteligente, quem trabalha por ele.
Um resfriado o mata, acentuando o desamparo das duas mulheres. Emília , que pressente a própria morte, passa a pressionar a filha para que esta, sempre fechada dentro de casa, arrume um bom casamento.
Nesta situação de aparecer na janela para chamar a atenção dos homens, situação que abominava, Aurélia conhece e se apaixona por Fernando Seixas. Por ele, recusa outros pretendentes, inclusive Eduardo Abreu, moço rico e dos mais distintos da corte.
Embora tivesse chegado a pedir a mão de Aurélia, devido à insistência de Emília em conhecer-lhe as intenções, Fernando a abandona, pelos motivos que já conhecemos.
Nesta ocasião, Lourenço Camargo, o avô de Aurélia, fica sabendo de toda a verdade sobre o filho. Visita então a nora e a neta, reconhece a ambas e deixa nas mãos de Aurélia um testamento.
Emília e Lourenço falecem, Aurélia transforma-se numa rica herdeira, a herdeira universal dos bens do avô, e começa assim a vingar-se da sociedade que tanto a maltratara. A vingança culmina com a conversa entre ela - mulher traída – e Fernanda Seixas - homem vendido - em plena câmara nupcial.

Terceira parte – Posse
Em Posse assistimos à punição que Aurélia infringe a Fernando e à reabilitação dele, seduzido pela grandeza e pelo fascínio de Aurélia. Fiel à palavra dada, o moço reage, com resignação e firmeza que não possuía, aos maus tratos da mulher, que tudo faz para humilhá-lo, ao mesmo tempo que, em alguns momentos, não consegue esconder que ainda o ama.

Quarta parte - o resgate
Nesta parte intensificam-se os caprichos e as contradições do comportamento de Aurélia, ora ferina, mordaz, insaciável na sua sede de vingança, ora ciumenta, doce, apaixonada. Intensifica-se também a transformação de Fernando, que não usufrui da riqueza de Aurélia, tornando-se modesto nos trajes, assíduo na repartição onde trabalhava, e assim adquirindo, sem perder a elegância, uma dignidade de caráter que nunca tivera.
No final, Fernando, um ano após o casamento, negocia com Aurélia o seu resgate. Devolve-lhe os vinte contos de réis, que correspondiam ao adiantamento do montante total do dote com o qual possibilitava o casamento da irmã, e mais o cheque que Aurélia lhe dera, de oitenta contos de réis, na noite de núpcias
Separam-se, então, a esposa traída e o marido comprado, para se reencontrarem os amantes, a última recusa de Seixas sendo debelada quando Aurélia lhe mostra o testamento que fizera, quando casaram, revelando-lhe o seu amor e destinando-lhe toda a sua fortuna.
O enredo deste romance mostra claramente a mistura de elementos romanescos e da realidade.
A história de Emília, mãe de Aurélia, é um exemplo típico do romanesco: pelo homem que ama abandona a tudo e a todos e sucumbe, sem uma queixa contra ele, cuja fraqueza a transforma em mártir do amor, em grande heroína de um romance ultra-romântico.
A história de Aurélia embora se tinja de cores e de momentos românticos, como o seu “happy end”, como a dignidade e o heroísmo com que ama Fernando, possui alguns elementos realistas, conforme veremos estudando mais profundamente os personagens do romance.


Dom Casmurro (Machado de Assis)

Realismo:

O Realismo é uma escola literária que surge na Europa em meados do século XIX como reação ao Romantismo e se desenvolve baseada na observação da realidade, no predomínio da razão e ancorada em uma visão analítica e científica. Surgiu na França, em 1857 (com a publicação do polêmico livro Madame Bovary de Gustave Flaubert) e suas influências se estenderam a diversos países. Esta corrente literária apareceu no momento em que ocorriam as primeiras lutas sociais, tornando-se, também, instrumento de ação contra o capitalismo e contra a burguesia, progressivamente mais dominadora em virtude da segunda fase da Revolução Industrial. Entre as principais características do Realismo pode-se destacar uma atitude dos autores contra as excentricidades românticas e contra as suas falsas idealizações da paixão amorosa, bem como um crescente respeito pela analise psicológica, pelas ciências exatas e pelo progresso técnico.
Motivados pelas teorias científicas e filosóficas da época, os escritores realistas desejavam retratar o homem e a sociedade em sua totalidade. Não bastava mostrar a face sonhadora e idealizada da vida como fizeram os românticos; era preciso mostrar a face nunca antes revelada: a do cotidiano massacrante, do amor adúltero, da falsidade e do egoísmo humano, da impotência do homem comum diante dos poderosos, da opressão e da miséria. Em lugar de fugir à realidade, os realistas procuram apontar falhas como forma de estimular a mudança das instituições e dos comportamentos humanos. Em lugar de heróis, surgem pessoas comuns, cheias de problemas e limitações.

Biografia de Machado de Assis
O menino Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 1839, no morro do Livramento, Rio de Janeiro. Filho de pai mulato (neto de escravos) e mãe vinda - ainda criança - dos Açores com a família que migrava. Era um casal de agregados que recebia trabalho e proteção de uma rica viúva, dona Maria José de Mendonça Barroso. Aos dez anos, o menino fica órfão de mãe e, aos 15, entra em sua vida a madrasta, Maria Inês, que era mulata como seu pai e que, segundo alguns biógrafos, teria sido uma verdadeira mãe. Nem bem entrado na adolescência, Joaquim Maria sai da chácara e muda-se para a cidade. A partir de então, o rapazinho iria superar, pelo talento e pelo mérito de um esforço ininterrupto, a barreira da classe social. Trabalhou como aprendiz de tipógrafo (foi funcionário de Manoel Antonio de Almeida, autor de Memórias de um Sargento de Milícias), revisor e funcionário público.
Publicou seu primeiro poema intitulado “Ela”, na revista Marmota Fluminense. Trabalhou como colaborador de algumas revistas e jornais do Rio de Janeiro. Fundou a Academia Brasileira de letras, tornando-se seu primeiro presidente. Morreu de câncer em 1908.

Fases

Podemos dividir as obras de Machado de Assis em duas fases:
• Na primeira fase (fase romântica) os personagens de suas obras possuem características mais idealizadas, sendo o amor e os relacionamentos amorosos os principais temas de seus livros. Desta fase podemos destacar as seguintes obras: Ressurreição (1872), seu primeiro livro, A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878).
• Na Segunda Fase (fase realista – ou da maturidade ), Machado de Assis abre espaço para as questões psicológicas dos personagens. É a fase em que o autor retrata muito bem as características do realismo literário. Machado de Assis faz uma análise profunda e realista do ser humano, destacando suas vontades, necessidades, defeitos e qualidades. Nesta fase destacam-se as seguintes obras: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1892), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908).
Segundo um ensaio de Alfredo Bosi sobre as personagens de Machado, a relação entre o passado e suas personagens é intrínseca. Para ele: “não se cortam impunemente os laços com o passado: os seus primeiros romances modelariam personagens determinadas a subir na vida, como Guiomar, em A Mão e a Luva, e Iaiá Garcia, no romance de mesmo nome. A ambição, misturada com um tanto de ingratidão e dureza nas relações familiares, seria racionalizada e, a rigor, justificada pela voz do narrador como necessária à sobrevivência da personagem. (...) as figuras femininas que lutam obstinadas para vencer naquele contexto patriarcal dos meados do século seriam travestimentos da alma do jovem Machado, que nelas projetaria o drama recalcado da sua própria ascensão social. Daí por diante, hipocrisia, ingratidão e, no limite, traição seriam motivos recorrentes nos seus romances. A dinâmica social se interioriza e se faz psicologia individual. O narrador tem aguda consciência das forças modeladoras do meio. Sem essa consciência, alerta e sofrida, não seria, aliás, possível a formação do humor machadiano, que morde e sopra, levanta a máscara e logo a afivela de novo para subtrair a evidência, mas deixando em pé a suspeita”. (Trecho do livro "Folha Explica Machado de Assis" de Alfredo Bosi)

Dom Casmurro:
Vivendo no Engenho Novo, um subúrbio do Rio de Janeiro, quase recluso em sua casa (construída segundo o molde da que fora a de sua infância, na Rua de Matacavalos), Bento de Albuquerque Santiago, com cerca de 54 anos e conhecido pelo apelido de Dom Casmurro por seu gosto pelo isolamento, decide escrever “reminiscências” sobre sua vida para afastar o tédio. Está em dúvida se escreveria uma “História dos Subúrbios”, que demandaria tempo e esforço, ou a sua biografia sentimental. Opta pela segunda.
Alternando a narração dos fatos passados com a reflexão sobre os mesmos, no presente, o protagonista/narrador informa ter nascido em 1842 e ser filho de Pedro de Albuquerque Santiago e de D. Maria da Glória Fernandes Santiago. O pai, dono de uma fazenda em Itaguaí, mudara-se para a cidade do Rio de Janeiro por volta de 1844, ao ser eleito Deputado. Alguns anos depois falece e a viúva, preferindo ficar na cidade a retornar a Itaguaí, vende a fazenda e os escravos, aplica seu dinheiro em imóveis e apólices e passa a viver de rendas, permanecendo na casa da rua Matacavalos, onde vivera com o marido desde a mudança para o Rio de Janeiro.
O protagonista/narrador conta que sua vida transcorria sem maiores incidentes até a “célebre tarde de novembro de 1857”, quando, ao entrar em casa, ouviu pronunciarem seu nome. Ele escondeu-se rapidamente atrás da porta para escutar a conversa entre sua mãe e o agregado José Dias, que morava com a família desde os tempos de Itaguaí.
Bentinho, como era então chamado, fica sabendo que sua mãe fizera a promessa de colocá-lo no seminário a fim de seguir a carreira eclesiástica. Segundo a promessa, caso tivesse um segundo filho homem, já que o primeiro morrera ao nascer, este seria padre.
Bentinho, que há muito tinha conhecimento das intenções de sua mãe, sofre violento abalo, pois fica sabendo que a reativação da promessa, que parecia esquecida, devia-se ao fato de José Dias ter informado D. Glória a respeito de seu namoro com Capitolina Pádua, amiga de infância que morava na casa ao lado. “Capitu”, como era chamada, tinha então catorze anos e era filha de “um tal” de Pádua, funcionário de carreira de uma repartição do Ministério da Guerra. A proximidade, a convivência e a idade haviam feito com que os dois adolescentes criassem afeição um pelo outro.
D. Glória, ao saber disto, fica alarmada e decide apressar o cumprimento da promessa. Os planos de Capitu, informada do assunto, e Bentinho, para impedir que D. Glória cumprisse a decisão ou que, pelo menos, a adiasse, fracassam. Como último recurso, o próprio Bentinho revela à mãe não ter vocação, o que também não a faz voltar atrás. Tio Cosme, um viúvo, irmão de D. Glória e advogado aposentado que vivia na casa desde que seu cunhado falecera, e a prima Justina, também viúva, que, há muitos anos, morava com a mãe de Bentinho, procuram não se envolver no problema. Assim, a última palavra fica com D. Glória, que, com o apoio do padre Cabral, um amigo de Tio Cosme, decide finalmente cumprir a promessa e o envia ao seminário, prometendo, contudo, que se dentro de dois anos o filho não revelasse vocação para o sacerdócio estaria livre para seguir outra carreira. Antes da partida de Bentinho, este e Capitu juram casar-se.
No seminário, Bentinho conhece Ezequiel de Sousa Escobar, filho de um advogado de Curitiba. Os dois tornam-se amigos e confidentes. Em um fim de semana em que Bentinho visita D. Glória, Escobar o acompanha e é apresentado a todos, inclusive a Capitu. Esta, depois da partida de Bentinho, começara a freqüentar assiduamente a casa de D. Glória, granjeando grande afeição, a ponto de D. Glória começar a pensar que se Bentinho se apaixonasse por Capitu e casasse com ela a questão da promessa estaria resolvida a contento de todos.
Enquanto isto, Bentinho continuava seus esforços junto a José Dias, que, tendo fracassado em seu plano de fazê-lo estudar medicina na Europa, sugeria agora que ambos fossem a Roma pedir ao Papa a revogação da promessa... uma desculpa do agregado para viajar à Europa. A solução definitiva, contudo, partiu de Escobar. Segundo este, D.Glória prometera a Deus dar-lhe um sacerdote, mas isto não queria dizer que o mesmo deveria ser necessariamente seu filho. Sugeriu então que ela adotasse algum órfão e lhe custeasse os estudos. D. Glória consultou o padre Cabral, este foi consultar o bispo e a solução foi considerada satisfatória.
Livre do problema, Bentinho deixa o seminário com cerca de 17 anos e vai a São Paulo estudar, tornando-se, anos depois, o advogado Bento de Albuquerque Santiago. Por sua parte, Escobar, que também saíra do seminário, tornara-se um comerciante, vindo a casar com Sancha, amiga de Capitu. Em 1865, Bento e Capitu finalmente se casam, passando a morar no bairro da Glória. O escritório de advocacia progride e a felicidade do casal seria completa não fosse a demora em nascer um filho. Isto faz com que ambos sintam inveja de Escobar e Sancha, que tinham tido uma filha, batizada com o nome de Capitolina, em homenagem à amiga. Depois de alguns anos, nasce Ezequiel, assim chamado para retribuir a gentileza do casal, afinal este era o primeiro nome de Escobar.
Ezequiel revela-se muito cedo um criança inquieta e curiosa, tornando-se a alegria dos pais e servindo para estreitar ainda mais as relações de amizade entre os dois casais. A partir do momento em que Escobar e Sancha, que moravam em Andaraí, resolvem fixar residência no Flamengo, a convivência entre as duas famílias torna-se completa e os pais chegam a pensar na possibilidade de Ezequiel e Capituzinha (como era chamada a pequena Capitolina) virem a se casar.
Porém, em 1871 Escobar morre afogado. No enterro, Capitu, que amparava Sancha, olha tão fixamente e com tal expressão para o cadáver que Bento fica abalado e quase não consegue pronunciar o discurso fúnebre. Seu ciúmes sempre fora intenso, desde o dia – ainda na adolescência - em que flagrara Capitu olhando para um jovem a cavalo. A perturbação, contudo, desaparece rapidamente. Sancha retira-se, em seguida, para a casa dos parentes no Paraná, o escritório de Bento continua a progredir.
Cerca de um ano depois, advertido pela própria Capitu, Bento começa a perceber as semelhanças de Ezequiel com Escobar. À medida que o menino cresce, estas semelhanças aumentam a tal ponto que em Ezequiel parece ressurgir fisicamente o velho companheiro de seminário. As relações entre Bento e Capitu deterioram-se rapidamente. A solução de colocar Ezequiel num internato não se revela eficaz, já que Bento não suporta mais ver o filho, o qual, por sua vez, se apega a ele cada vez mais, tomando a situação ainda mais crítica.
Num gesto extremo, Bento decide suicidar-se com veneno, colocado numa xícara de café. Interrompido pela chegada de Ezequiel, altera seus planos e decide dar o café envenenado ao filho, mas, no último instante, recua e em seguida desabafa, dizendo a Ezequiel que não é seu pai. Neste momento Capitu entra na sala e quer saber o que está acontecendo. Bento repete que não é pai de Ezequiel e Capitu exige que diga por que pensa assim. Apesar de Bento não conseguir expor claramente suas idéias, Capitu diz saber que a origem de tudo é a casualidade da semelhança, argumentando em seguida que tudo de deve à vontade de Deus. Capitu retira-se e vai à missa com o filho. Bento desiste do suicídio.
Na volta da missa, Bento decide que a separação seria o melhor caminho. Para manter as aparências, o casal parte pouco depois rumo à Europa, acompanhado do filho, de onde Bento retorna sozinho. Recebendo algumas cartas, Bento viaja outras vezes à Europa, sempre com o objetivo de manter as aparências, mas nunca mais chega a encontrar-se com Capitu. Tempos depois morrem D. Glória e José Dias. Bento retira-se para o Engenho Novo, onde, certo dia, recebe a visita de (seu filho?) Ezequiel de Albuquerque Santiago, que – já entrando na idade adulta – era, então, a imagem perfeita de Escobar. Capitu morrera e fora enterrada na Europa. Ezequiel permanece alguns meses no Rio e depois parte para uma viagem de estudos científicos ao Oriente Médio, já que era apaixonado por arqueologia. Onze meses depois morre de febre tifóide em Jerusalém e é ali enterrado.
Mortos todos, familiares e velhos conhecidos, Bento/Dom Casmurro fecha-se em si próprio, mas não se isola e encontra muitas outras “amigas” que o “consolam”. Jamais, porém, alguma delas o fez esquecer a “primeira amada de seu coração”, que – segundo ele – o teria traído com seu melhor amigo. Assim quisera o destino. Ficamos sabendo, portanto que o narrador já um senhor respeitável, decidiu escrever um livro de memórias na tentativa de atar “as duas pontas da vida”, passado e presente, da "construção ou reconstrução" de si mesmo.
É certo que, antes da narrativa, tenta recompor seu passado construindo uma casa em tudo semelhante à de sua adolescência, todavia esse artifício mostra-se inútil e frustrante. Por isso, passa a essa outra alternativa: a da narrativa, que se mostra eficaz. E após seu término, para esquecer tudo, nada melhor que escrever, segundo decide, um outro livro: uma História dos subúrbios do Rio de Janeiro.
O adultério de Capitu não é esclarecido para o leitor, já que o próprio narrador-personagem, no decorrer da história, apresenta uma série de indícios, provas e contraprovas, como o fato de Capitu ser parecidíssima com a mãe de Sancha, sem haver, com toda certeza, qualquer parentesco entre elas.
Através das descrições que se faz das personagens, percebe-se um fato comum: os olhos, tão bem explorados por Machado de Assis, como nos exemplos: “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, “olhos de ressaca”, “olhos dorminhocos”, “olhos redondos, que me acompanham para todos os lados”. Na verdade, esses elementos físicos, muitas vezes, destacam o estado interior; tem-se um retrato íntimo das personagens. Em “olhos redondos” percebe-se uma característica física, mas, logo após, verifica-se um importante traço psicológico: “...que me acompanham para todos os lados”; que me observam, me estudam.

Personagens:

Capitu: “criatura de 14 anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, ... morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo ... calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos”.
Personagem que tem o poder de surpreender : “Fiquei aturdido. Capitu gostava tanto de minha mãe, e minha mãe dela, que eu não podia entender tamanha explosão”.
Segundo José Dias, Capitu possuía “olhos de cigana oblíqua e dissimulada", mas para Bentinho os olhos pareciam "olhos de ressaca"; "Traziam não sei que fluido misterioso e energético, uma força que arrastava para dentro, com a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca”.
Dona Glória, mãe de Bentinho (esta personagem é definidora, já que, além de viúva, perdeu o primeiro filho. Em virtude disso tornou-se possessiva): desejava fazer do filho um padre, devido a uma antiga promessa, mas, ao mesmo tempo, desejava tê-lo perto de si, retardando a sua decisão de mandá-lo para o Seminário. Portanto, no início encontra-se como opositora, tornando-se depois, adjuvante.
Tio Cosme, irmão de Dona Glória, advogado, viúvo, “tinha escritório na antiga Rua das Violas, perto do júri... trabalhava no crime"; "Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos”. Ocupa uma posição neutra: não se opunha ao plano de Bentinho, mas também não intervinha.
José Dias, agregado: “amava os superlativos”, “ria largo, se era preciso, de um grande riso sem vontade, mas comunicativo ... nos lances graves, gravíssimo”, “como o tempo adquiriu curta autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo”, “as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole”. Tenta, no início, persuadir Dona Glória à mandar Bentinho para o Seminário, passando depois a tentar ajudar o protagonista a sair, pelo interesse de viajar à Europa.
Prima Justina, prima de Dona Glória: Parece opor-se por ser muito egoísta, ciumenta e intrigante. Viúva, e segundo as palavras do narrador : “vivia conosco por favor de minha mãe, e também por interesse”, “dizia francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e a Paulo o que pensava de Pedro”.
Pedro de Albuquerque Santiago, falecido, pai de Bentinho: A respeito do pai o narrador coloca : “Não me lembro nada dele, a não ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me acompanham para todos os lados...”
Sr. Pádua e Dona Fortunata, pais de Capitu: O primeiro, “era empregado em repartição dependente do Ministério da Guerra” e a mãe “alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros”. Jamais opuseram-se à amizade de Capitu e Bentinho, pelo contrário, o narrador insinua que ele, Bento, seria como um bilhete premiado para o casal de situação remediada.
Padre Cabral: personagem que encontra a solução para o caso de Bentinho; se a mãe do menino sustentasse um outro, que quisesse ser padre, no Seminário, estaria cumprida a promessa.
Escobar, amigo de Bentinho: seminarista, “era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, ... como tudo”. Repare que o narrador insinua a falsidade do amigo
Sancha, companheira de Colégio de Capitu: mais tarde se casa com Escobar.
Ezequiel, filho (?) de Capitu e Bentinho: tem o primeiro nome de Escobar (idéia de Bentinho, em colocar o mesmo). Vai para a Europa com a mãe, sendo que mais tarde, já moço, volta ao Brasil para rever o pai. Morre em Jerusalém.
A metalinguagem
Em Dom Casmurro, a narrativa discute o próprio ato e modo de narrar. Há, portanto, a função metalingüística, em que a narrativa esclarece a própria narrativa. Logo no início, nota-se a preocupação do personagem-narrador em explicar o título do livro e os motivos que o impulsionaram a confeccionar tal livro: “Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores, alguns nem tanto.” ou “Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão”.


Triste Fim de Policarpo Quaresma (Lima Barreto)

Pré-Modernismo:

O que se convencionou chamar de Pré-Modernismo, no Brasil, não constitui uma "escola literária", ou seja, não temos um grupo de autores afinados em torno de um mesmo ideário, seguindo determinadas características. Na realidade, Pré-Modernismo é um termo genérico que designa uma vasta produção literária que abrangeria os primeiros 20 anos deste século. Aí vamos encontrar as mais variadas tendências e estilos literários, desde os poetas parnasianos e simbolistas, que continuavam a produzir, até os escritores que começavam a desenvolver um novo regionalismo, além de outros mais preocupados com uma literatura política e outros, ainda, com propostas realmente inovadoras.
Por apresentarem uma obra significativa para uma nova interpretação da realidade brasileira e por seu valor estilístico, estudam-se no Pré-Modernismo as obras de Euclides da Cunha, Lima Barreto, Graça Aranha, Monteiro Lobato e Augusto dos Anjos.
Politicamente, vivia-se o período de estabilização do regime republicano e a chamada "política do café-com-leite", com a hegemonia de dois Estados da federação: São Paulo, em razão de seu poder econômico, e Minas Gerais, por possuir o maior colégio eleitoral do país. Embora não tivesse absorvido toda a mão-de-obra negra disponível desde a Abolição, o país recebeu nesse período um grande contingente de imigrantes para trabalhar na lavoura do café e na indústria.

O Autor:
Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em uma sexta feira 13, em maio de 1881 no Rio de Janeiro. Filho de uma escrava com um português, cursou as primeiras letras no Ginásio em Niterói e depois transferiu-se para o Colégio Pedro II. Em 1897 ingressou no curso de Engenharia da Escola Politécnica. Em 1902 precisou abandonar o curso para assumir a chefia e o sustento da família, devido ao enlouquecimento do pai (alcoólatra), e prestou concurso, sendo aprovado para o cargo de amanuense na Secretaria da Guerra. Apesar do emprego público e das várias colaborações no jornais da época lhe darem uma certa estabilidade financeira, Lima Barreto começou a entregar-se ao álcool e a ter profundas crises de depressão. Além de sofrer com o preconceito racial.
No ano de 1909 fez sua estréia como escritor com o lançamento da obra “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”. Nessa época, dedicou-se à leitura dos grandes nomes da literatura mundial, dos escritores realistas europeus de seu tempo, tendo sido dos poucos escritores brasileiros a tomar conhecimento e a ler os romancistas russos. Em 1911 escreveu o romance “Triste fim de Policarpo Quaresma”, publicado em folhetins no Jornal do Comércio.
Apesar do aparente sucesso literário, Lima Barreto não consegue afastar-se do álcool e é internado por duas vezes entre os anos de 1914 e 1919. A partir de 1916 começou a militar a favor da plataforma anarquista. Em 1917 publicou um manifesto socialista, que exaltava a Revolução Russa. No ano seguinte, doente e muito fraco, foi aposentado do serviço público e em 1º de novembro de 1922 veio a falecer, vítima de um colapso cardíaco.

Análise da obra

A obra de Lima Barreto é uma crônica autêntica dos subúrbios cariocas e de sua população, retratando, de um lado, a população pobre e oprimida e, de outro, o mundo vazio de uma burguesia medíocre e analfabeta que se baseia em valores materiais e preconceitos; de políticos poderosos e incompetentes e de militares opressores.
Para isso, o autor reflete, muitas vezes, a partir de sua própria observação crítica do momento em que vivia (vivemos até hoje) as suas experiências, principalmente enfocando as relações dessa sociedade em face aos negros e mestiços, que sofriam preconceito racial. Por isso é possível inserir o autor em uma literatura de características realistas.
Prendendo-se à autenticidade histórica daquele tempo, sua ficção retrata acontecimentos importantes da vida republicana. É sempre a República Velha o tema da caricatura que surge na ficção de Lima Barreto. Da República se fez opositor irascível e irreversível, implacável e demolidor — utilizando os recursos da sátira, da ironia, da caricatura, da crítica contundente, desmontou todo o esquema de sustentação do regime republicano recém implantado. As mazelas do governo republicano, o grau de corrupção política e econômica que empestava o regime, não se cansou de causticá-las por toda a sua obra.
Seu estilo é direto e objetivo, sem os floreios tão típicos do momento que viveu, influenciados por uma literatura artificial ao modelo da “Belle Èpoque”. Por conta disso pode ser considerado um dos sucessores de Machado de Assis.

Obras
Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909)
Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911)
Numa e Ninfa (1917)
Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá (1919)
Bagatelas
Os Bruzundangas
Clara dos Anjos
Histórias e Sonhos
Feiras e Mafuás

Características

Estilo de época

Segundo Moisés Gicovate, eis as principais características da obra de Lima Barreto:
– Não copiou nem imitou. Os personagens de Lima Barreto são arrancados de sua própria vida; escrevia por necessidade, era uma forma de libertar-se, de analisar-se a si próprio.
- Os escritos são, em grande parte, autobiográficos; encerram muitos fatos verdadeiros, com a interpretação de Lima Barreto.
- A espontaneidade e a marca de seu estilo: fazia da pena o instrumento do coração.
- Lançou mão da sátira, da ironia e do humor. Certo, tudo isso é um meio de defesa, ou, segundo Freud, é mesmo o principal meio de defesa. De qualquer forma, a caricatura e a mordacidade faziam ressaltar a brutalidade e o ridículo de certas situações e, na medida em que se fundamentavam na realidade, eram objetivamente válidas.
- A obra de Lima Barreto aborda quase tudo, no seu tempo: forma de governo, organização econômica, preconceitos de raça, a burocracia, os tráficos de influência; os grupinhos, as sociedades de elogio mútuo - sem as quais o literato era condenado à marginalização.

Um Precursor do Modernismo

Os críticos geralmente concordam em situar Lima Barreto entre os pré-modernistas: "Caberia ao romance de Lima Barreto e de Graça Aranha, ao largo ensaísmo social de Euclides, Alberto Torres, Oliveira Viana e Manuel Bonfim, e a vivência brasileira de Monteiro Lobato o papel histórico de mover as águas estagnadas da "belle epoque", revelando, antes dos modernistas, as tensões que sofria a vida nacional" (Bosi, HCLB, Cultrix, 2a. ed., p. 344).
O período que vai de 1902 a 1922 é considerado "atípico" dentro da literatura brasileira. Tivemos uma série de "neos": neo-realismo, neo-parnasianismo, neo-simbolismo, todos sem maior expressão. O que triunfou, mesmo, foi uma sintaxe acadêmica, lusitanizante, que cortou por um momento a irrupção do projeto lingüístico brasileiro, começado no Romantismo e continuado no Realismo. Lima Barreto rompeu com essa literatura muito antes do Modernismo.

Precursor social

Enquanto alguns escritores do período escreviam como se estivéssemos no melhor dos mundos, e viam na literatura "o sorriso da sociedade" (Afrânio Peixoto), Lima Barreto escancarou as janelas e deixou entrar o cheiro forte da realidade. Ele assumiu os problemas do seu tempo e examinou-os em seus romances. Foi, sobretudo, o "romancista da Primeira República", vista pelos olhos da classe média dos subúrbios do Rio. Enquanto os historiadores oficiais falavam nas lutas patrióticas da consolidação da República, ele via o outro lado da medalha: o povo, massa de canhão totalmente inconsciente do que se passava; a luta pelo poder entre os barões da agricultura e a burocracia militar ou civil; e, sobretudo, a vida dos subúrbios, com seus dramas e suas pequenas felicidades, seus grotescos e ridículos, seu lado terno e humano... A tradição desse romance realista remonta as "Memórias de Um Sargento de Milícias", de Manuel Antônio de Almeida, e, depois de Lima Barreto, só teria continuadores expressivos já em pleno Modernismo, com o romance regionalista.

Precursor literário

Lima Barreto rompeu conscientemente com a linguagem anacrônica, classicizada, de um Rui Barbosa, de um Coelho Neto, de tanto prestígio na sua época. Sobre isso, ele tem tiradas inesquecíveis: acusava os escritores acadêmicos de fazerem da literatura "uma continuação do exame de português". Foi por isso, e por alguns pequenos descuidos em suas obras, que os adversários o acusaram de desleixado, quando na verdade ele rompeu voluntariamente com os representantes da "idade de ouro do lídimo linguajar castiço e vernáculo" (M. Cavalcanti Proença). O combate a tal tipo de linguagem seria retomado pelo Modernismo. Lima Barreto chegou primeiro.

Resumo do Enredo

Primeira Parte

Contém cinco capítulos. O Major Policarpo Quaresma é caracterizado inicialmente. Depois fica-se sabendo das "reformas radicais" por que vem passando o seu espírito, no sentido de colocar em prática os seus ideais patrióticos. Tenta aprender violão e modinhas, com Ricardo Coração dos Outros; dedica-se ao folclore e toma parte na brincadeira do Tangolomango, com crianças, numa festa em casa de Gal. Albernaz. Finalmente, passa a imitar os usos e costumes dos índios, os únicos "brasileiros legítimos".
No capítulo terceiro, o autor nos transporta para uma festa em casa do general Albernaz, em comemoração ao noivado de sua filha, Ismênia, com o dentista recém-formado Cavalcanti. O leitor é apresentado a vários personagens que iremos acompanhar durante todo o romance: o contra-almirante Caldas, o Dr. Florêncio, o major Bustamante, as filhas do General: Quinota, Zizi, Lalá e Vivi e, sobretudo, Ismênia. D. Maricota, a esposa ativa do General, e a principal animadora da festa. A conversa banal, versando sempre sobre assuntos militares (as batalhas de que nunca participaram...) ou burocráticos. Lima Barreto critica o basbaque do povo miúdo diante de Cavalcanti, vendo no seu título de "doutor" algo quase sobrenatural. - Mais para o fim da festa, chega o inefável burocrata Genelício, parente de Caldas e namorado de Quinota, trazendo a notícia de que o Major Quaresma tinha sido internado num hospício. As razões desse internamento são esclarecidas no capítulo seguinte: Quaresma havia dirigido um requerimento à Câmara, solicitando ao Congresso a adoção do tupi-guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro. Isto foi comentado na sociedade, na repartição, na imprensa, e Quaresma foi alvo de chacota geral. Poucos dias depois, por distração, envia um oficio em tupi ao Ministro do Exército, - o que 1he valeu uma suspensão do serviço e novos aborrecimentos. Isolado, não suportou tanta decepção, o que o levou à loucura. Durante o período de internamento, recebia as visitas de Ricardo Coração dos Outros e, sobre tudo, de Vicente Coleoni e sua filha Olga, que era afilhada de Quaresma. Os três cuidaram dos interesses do Major, conseguindo, inclusive, a sua aposentadoria.
Com Ismênia, as coisas não iam bem: depois do noivado, Cavalcanti sumira no mundo e nunca mais dera notícias. Humilhada, a moça começou a definhar.
Olga, por seu turno, torna-se noiva de um doutorando em Medicina, Armando Borges.

Segunda Parte

Enquanto toda a primeira parte se situou nos subúrbios do Rio, agora o leitor é levado para o sítio do Sossego, adquirido por Quaresma, atendendo a uma sugestão de Olga, depois que tivera alta no hospício. A intenção do Major, na verdade, era dar seqüência aos seus planos patrióticos. Chegara à conclusão de que uma agricultura forte seria o principal alicerce da pátria. Vendeu a casa de São Januário e mudou-se para o sítio, a quarenta quilômetros do Rio, no município de Curuzu, acompanhado pela irmã, Adelaide, e pelo fiel criado Anastácio. As primeiras semanas são dedicadas à exploração do local, que estava abandonado. Quaresma observa os espécimes vegetais e animais, as rochas, organiza um museu e uma biblioteca agrícola...
Cerca-se de instrumentos que, acredita, lhe seriam úteis: termômetro, barômetro, pluviômetro, higrômetro, anemômetro... Mas o simples manejo da enxada foi aprendido com muita dificuldade, apesar da paciência do "mestre" Anastácio.
Quaresma, depois de algum tempo, recebe as visitas do escrivão da coletoria, Antonino Dutra, que desejava conhecer a sua posição política, e de Ricardo Coração dos Outros. Num "flash-back", o autor mostra a vida que Ricardo levava numa "casa de cômodos", num subúrbio do Rio, e descreve a "fauna" que habitava tais casas. Ele conseguira a passagem para Curuzu graças à influência do general Albernaz, em cuja casa esteve, convidado para cantar na festa de casamento de Quinota com Genelício.
Nesse meio tempo, Olga e Armando Borges também se casam e vão visitar Quaresma. Ricardo passou um mês no sítio e foi um triunfo na vila, onde fez muitas amizades e recebeu inúmeros convites para cantar - entre eles, do Dr. Campos, médico do local, chefe político e presidente da Câmara Municipal. Quaresma é atacado anonimamente pelo jornal "O Município" de Curuzu e, pelas indicações de Ricardo, o autor deve ter sido o tenente Antonino Dutra.
Olga se mostra impressionada com a miséria do interior.
Certa noite, ao deitar-se, Quaresma ouviu pequenos estalidos. Na despensa, depara com milhares de formigas que carregavam as suas reservas de milho e feijão. A partir daí, travaria uma luta sem tréguas com elas - e não conseguiria vencê-las.
No entanto, o duro aprendizado agrícola começava a mostrar-1he o verdadeiro vulto dos problemas nacionais: as pragas, como as formigas; os preços vis pagos ao produtor pelos atravessadores do Rio, onde colocava a produção do "Sossego"; a miséria, a pobreza e a improdutividade das terras; as perseguições políticas do interior, como as multas que, por vingança, lhe impuseram o Dr. Campos e o Tenente por sua mania de modinhas, seus estudos de folclore e o seu interesse pelo tupi! O Brasil precisava realmente de um governo forte, para reformar em profundidade a administração e espalhar "sábias leis agrárias"... Talvez um novo Henrique IV (França), assessorado por um novo Sully.
E os acontecimentos pareciam ajustar-se as suas reflexões. Estalou, no Rio, a revolta da Esquadra contra Floriano. Não seria este "Marechal de Ferro" o homem providencial, o governante forte de que o Brasil precisava? Foi ao correio e telegrafou: "Mal. Floriano, Rio. Peço energia. Sigo já - Quaresma".
Lima Barreto o leitor leva , então, ao Rio para mostrar a movimentação e o impacto trazidos pela revolta. Muitos fazem cálculos para avaliar os benefícios que ela lhes pode trazer: Albernaz terá uma comissão extra para reforçar as combalidas finanças; Caldas espera, enfim, comandar uma frota do Governo e ganhar suas infindáveis demandas; Fontes, positivista, estava furioso com os insurretos e Bustamante já organiza um batalhão patriótico de voluntários. Genelício não perderia a chance para se promover a subdiretor da Secretaria da Fazenda e o Dr. Armando Borges enfim conseguiria ser médico do Estado.
Enquanto isso, no seu cubículo, Coração dos Outros, indiferente, ignorante de tudo, compunha suas modinhas e cantava os lábios da sua Carola, "onde encontrava a doce ilusão que adoça a vida..."

Terceira Parte

De novo as ações do romance deslocam-se para o Rio. Quaresma vem, é recebido por Floriano, depois de esperar muito, já que o Marechal vivia cercado por cadetes e oficiaisda Escola Militar, positivistas fanáticos da República, da autoridade e de Floriano. A descrição do Presidente é antológica: "... tinha ainda o palito na boca, como sinal do almoço; sua fisionomia era vulgar e desoladora.
O bigode caído, o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava uma grande "mosca"; os traços, flácidos e grosseiro". "Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões" "e todo ele era gelatinoso, parecia não ter nervos". "A sua concepção de governo era a de uma tirania doméstica: o bebê portou-se mal, castiga-se". "Portar-se mal era fazer oposição, e os castigos eram... prisão e morte.
Floriano recebeu com má vontade o memorial que Quaresma lhe entregou, sobre os problemas agrícolas do país: "- Deixa aí...". O Bustamante, que também lá estava, não perdeu tempo e alistou o Major Policarpo no seu batalhão patriótico, cobrando-lhe, além disso, 400.000 mil reis pela patente de Major.
Quaresma passa pela casa do compadre Coleoni para revê-lo e vem para o quartel, que funcionava num velho cortiço condenado pela Higiene. Coração dos Outros foi também alistado "voluntariamente" e, aos gritos e berros, pedia que lhe devolvessem o violão – o que foi feito por solicitação do Quaresma.
Na rotina da revolta, o peso e o comando do "batalhão patriótico" acabaram ficando por conta do herói, que passava os dias e as noites no quartel, enquanto os outros arrumavam inúmaras regalias e dispensas. Quaresma estuda furiosamente as artes militares, como artilharia, balística, mecânica, cálculo... Quase todas as tardes trocavam-se tiros entre o mar e as fortalezas, e "tanto os navios como os fortes saíam incólumes de tão terríveis provas".
Certa madrugada, o Mal. Floriano, que gostava de "incertas" pelos quartéis e pelos fortes, apareceu no batalhão do Quaresma – e este se animou a perguntar-lhe se já lera o seu memorial. O Presidente, com sinais de aborrecimento mortal, diz-lhe: "Você, Quaresma, é um visionário". E Lima Barreto descreve, então, a Lua povoando os espaços e criando uma atmosfera de sonho.
No terceiro capítulo desta ultima parte, o autor descreve a morte de Ismênia. O noivo não apareceu mesmo, e ela definhou e enlouqueceu. O pai experimentou tudo: médicos, curandeiros, médiuns... O Dr. Armando, por indicação de Quaresma, também tentou recuperá-la. Pressentindo a morte, Ismênia vestiu-se de noiva. "O véu afagou-lhe as espáduas carinhosamente, como um adejo de borboleta. Teve uma fraqueza, uma cousa, deu um ai e caiu de costas na cama, com as pernas para fora..." "Quando a vieram ver, estava morta".
A revolta já durava quatro meses. O Dr. Armando já conseguira sua nomeação, na vaga de um colega demitido por ter visitado um amigo preso. Quaresma começava a sentir-se possuído por mortal desespero ao ver a repressão violenta e os crimes do governo, e ao perceber que Floriano jamais faria as reformas com que sonhara. "Era, pois, por esse homem que tanta gente morria?" Recebe de Bustamante a notícia de que o "batalhão" iria marchar para a frente de batalha, sob o comando de Quaresma: ele mesmo arranjara uma desculpa para não ir: tinha que fazer a escrituração contábil da unidade...
Coração dos Outros, proibido de cantar, vivia triste como um "melro engaiolado".
O sítio do Sossego estava no mais completo abandono, apesar da boa vontade de Anastácio. D. Adelaide tinha a companhia de Sinhá Chica, velha benzedeira, e escrevia cartas desesperadas ao irmão, pedindo a sua volta. E através de uma carta de Quaresma a ela que ficamos sabendo da seqüência dos acontecimentos: ele fora ferido em combate, assim como Ricardo Coração dos Outros, e este bem mais gravemente. Adquirira um horror definitivo à guerra: "Eu duvido, eu duvido, duvido da justiça disso tudo, duvido de sua razão de ser...".
A revolta foi, afinal, dominada e Quaresma, solitário, passou a comandar outro batalhão, como carcereiro de marinheiros presos. Desmoronara-se todo o sistema de idéias que o levara a meter-se na guerra. "Todos tinham vindo ou com pueris pensamentos políticos, ou por interesse; nada de superior os animava". "Os prisioneiros eram a gentinha pequena", "inteiramente estranha à questão em debate..." "sem responsabilidade, sem anseio político, sem vontade própria, simples autômatos nas mãos dos chefes e superiores que a tinham abandonado à mercê do vencedor..."
Quando assistiu, certa noite, ao sorteio dos prisioneiros que iriam ser assassinados, por vingança, no "Boqueirão", levou o choque decisivo: ele se tinha misturado naqueles tenebrosos acontecimentos, e assistia "ao sinistro alicerçar do regime".
Escreveu ao Presidente, protestando contra o que acabara de ver. Resultado: foi preso e encarcerado na Ilha das Cobras, em cuja masmorra reflete sobre o seu estranho destino. Era essa a recompensa que recebia da Pátria, por tê-la amado tanto, por ter-lhe ofertado toda a sua vida, renunciando a. tudo... "O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o a loucura. E a .agricultura? Nada. As terras não eram ferazes como diziam os livros... "E onde estava a doçura de nossa gente?" "Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros?" "A sua vida era um encadeamento de decepções." "A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete". "A que existia, de fato era a do tenente Antônio, do Dr. Campos, a do homem do Itamarati"
Ricardo, sabendo de sua prisão, pôs-se a campo para tentar salvá-lo. Lembrou-se dos amigos comuns e foi procurá-los, mas todos se esquivaram: Albernaz não poderia dar a impressão de ser contra o governo; Genelício não se metia com essas coisas. Bustamante ameaçou, até, prendê-lo também.
Lembrou-se de Olga. Ela foi procurar Floriano, cercado então, de bajuladores. Um secretário que a recebeu: "Quaresma? Aquele traidor? O Marechal não a atenderá". Olga lhe deu as costas, arrependida por ter vindo. "Com tal gente, era melhor tê-lo deixado morrer só e heroicamente num ilhéu qualquer, mas levando para o túmulo inteiramente intacto o seu orgulho, a sua doçura, a sua personalidade moral, sem a mácula de um empenho que diminuísse a injustiça de sua morte, que de algum modo fizesse crer aos seus algozes que eles tinham direito de matá-lo".

Aspectos estruturais

Classificação - Trata-se de um romance social, tendo como núcleo principal a história de um patriota tão puro e ardente quanto ingênuo, quase "louco".
A narração é feita em terceira pessoa, "narrador onisciente". Em pequenos trechos, a história é contada pelos próprios personagens, como as circunstâncias da guerra que o major Quaresma descreve, em carta, a sua irmã Adelaide. Como o autor conduz simultaneamente vários núcleos dramáticos (várias histórias), ele às vezes antecipa alguns fatos para, em "flash-back", voltar atrás e explicar como as coisas sucederam. Assim, no terceiro capítulo, Genelício dá a notícia de que o Major Quaresma fora internado num hospício. E só no capítulo quarto é que iremos saber as causas e circunstâncias desse internamento.
Lima Barreto desenvolve, simultaneamente, o núcleo principal e os núcleos secundários da história. Em quase todos os capítulos comparece a totalidade dos protagonistas. Para isso o autor se vale de encontros fortuitos entre os personagens, ou de correspondência, ou de visitas recíprocas, ou festas e almoços. Através desses processos ele encontra jeito de ir contando paralelamente a história de todos e de cada um.
Os diálogos são, geralmente, de extraordinária espontaneidade e adequação aos personagens: a fala de Genelício é sempre pedante, afetada e superior; a do Major Quaresma trai as suas leituras patrióticas e seu jeito tímido a formaliza; a de Vicente Coleoni e entremeada de expressões e palavras italianas...

Tempo: o romancista da Primeira República

A ação do romance situa-se numa época precisa: a da implantação da República no Brasil, com os governos de Deodoro e, sobretudo, do Marechal Floriano.
Os acontecimentos políticos são vistos no livro não pela ótica oficial, mas pelos olhos do povo e, em particular, na perspectiva da classe média suburbana.
Sob o aspecto sociológico, Lima Barreto conseguiu uma pintura perfeita: surge diante dos olhos aquela época dos fraques, das casacas e sobrecasacas, do pince-nez (óculos de um aro só), das correntinhas de ouro nas cavas dos coletes, das bengalas e das cartolas... Dorme-se de camisão, paga-se em ceitis, mil réis e contos de réis. Anda-se de coches, de tílburis e de bondes puxados a mulas, joga-se o "pocker" , as mulheres enfiam-se em cassas bem engomadas... As gravatas têm alfinetes, as casas são ornamentadas com monogramas na porta de entrada, compoteira nas cimalhas "e outros detalhes equivalentes..."
Já o tempo da narrativa é cronológico: os fatos, normalmente são apresentados em sua seqüência temporal. Raramente, como vimos há uma antecipação, em algum capítulo, logo seguida de um "flash-back" para restabelecer o elo perdido.

Lugar: o romance dos subúrbios do Rio

Com exceção dos meses passados no "Sossego", a obra se ambienta, como outras de Lima Barreto, no Rio de Janeiro e, sobretudo, nos seus subúrbios. Há um pano de fundo maravilhosamente bem retratado, econômica, social e folcloricamente: o sossego das ruas da periferia, as fofocas, a vigilância e o comentário dos vizinhos sobre os vizinhos, os tipos populares – como o próprio e inesquecível Ricardo Coração dos Outros. A "aristocracia" dos subúrbios, composta
de funcionários públicos, de pequenos negociantes, de médicos de alguma clínica, de tenentes de diferentes milícias, nata essa que impara pelas ruas esburacadas daquelas distintas regiões..."
O ambiente burocrático das repartições publicas, de "papelada inçada", de conversas e "gozações", e descrito com vivacidade: Lima Barreto o conhecia muito bem.
Outra reconstituição que nos cala fundo, porque é feita com fibras de sua própria vida e experiência, é a do hospício, onde Quaresma passou uma temporada.
O sítio do "Sossego" é descrito logo no início da segunda parte. O lugar tinha "o aspecto tranqüilo e satisfeito de quem se julga bem com sua sorte". "A casa erguia-se sobre um socalco, uma espécie de degrau, formando a subida para a maior altura de uma pequena colina que lhe corria nos fundos. Em frente, por entre os bambus da cerca, olhava uma planície a morrer nas montanhas que se viam ao longe". Essa planície era cortada por um regato de águas sujas e, qual uma fita, pela via férrea. A habitação "era também risonha e graciosa nos seus muros caiados. Edificada com a desoladora indigência das nossas casas de campo, possuía, porém, vastas salas, amplos quartos, todos com janelas, e uma varanda com uma colunata heterodoxa".
Outra excelente descrição dos subúrbios do Rio aparece no segundo capítulo da segunda parte, conforme mostramos ao resumir o enredo. Finalmente, nos últimos capítulos do romance a ação decorre muitas vezes a beira-mar. E não faltam as poéticas reconstituições desse ambiente: a cerração que de manhã envolve tudo, o pôr-do-sol na praia...
O centro da cidade, a época da rebelião, era alegre e jovial. Havia muito dinheiro, o governo pagava soldos dobrados... Os teatros eram freqüentados e os "restaurantes" noturnos também.
Em contraste, o Campo da São Cristóvão: "ia vendo aquela sucessão de cemitério, com as suas campas alvas que sobem montanhas, como carneiros tosquiados e limpos a pastar; aqueles ciprestes meditativos que as vigiam; e como que se lhe representava que aquela parte da cidade era feudo e senhorio da morte".

Personagens: a fabulosa galeria

Lima Barreto, com este romance, criou tipos que já não mais lhe pertencem, mas à literatura brasileira. Em particular, o major Policarpo Quaresma e o menestrel "Ricardo Coração dos Outros".
1. O Major Policarpo Quaresma- "era um homem pequeno, magro, que usava pince-nez, olhava sempre baixo, mas quando fitava alguém ou alguma cousa, os seus olhos tomavam, por detrás das lentes, um forte brilho de penetração, e era como se ele quisesse ir à alma da pessoa ou da cousa que fixava". "Contudo, sempre os trazia baixos como se se guiasse pela ponta do cavanhaque que lhe enfeitava o queixo". "Vestia-se sempre de fraque, e era raro que não se cobrisse com uma cartola de abas curtas e muito alta, feita segundo um figurino antigo..." Tudo "made in Brasil": "de tudo que há nacional, eu não uso estrangeiro. Visto-me com um pano nacional, calço botas nacionais e assim por diante."
De profissão, era burocrata, tendo chegado a subsecretário do Arsenal de Guerra; não tendo podido ser militar, evoluiu-se sob os dourados do Exército, escolheu o ramo militar da administração. Era onde estava bem. Embora fosse considerado, pela sua idade, ilustração, modéstia e honestidade, os colegas caçoavam dele: "Este Quaresma! Que cacete. Pensa que somos meninos de tico-tico. Arre! Não tem outra conversa." Esta conversa, do Quaresma, era música de umanota só: a Pátria, sua grandeza, suas riquezas.
Há quase trinta anos, a rotina do Major servia de relógio para a vizinhança. Vivia isolado, com a irmã Adelaide. Dedicava-se a estudar e conhecer o Brasil e suas riquezas, possuindo ótima biblioteca especializada nesse tema.
O que ele tem de mais característico, no entanto, é a sua filosofia de vida: "... uma disposição particular de seu espírito, forte sentimento que guiava sua vida. Policarpo era patriota. Desde moço, aí pelos vinte anos, o amor da pátria tomou-o todo inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e absorvente".
2. O Major vivia com sua irmã Adelaide: espírito totalmente diferente, não o entendia em nada. Censurava-o constantemente pela rigidez da preferência peles artigos nacionais. Queixava-se dos temperos nacionais, da manteiga rançosa, da falta de "flores de verdade" no jardim...
Tinha seus cinqüenta anos - quatro a mais que o Major. Era uma bela velha de corpo médio", "ser metódico, ordenado e organizado, de idéias simples, médias e claras, seus olhos verdes não revelavam nenhuma paixão ou ambição."
3. Anastácio era o criado que desde sempre acompanhava o Major. Preto africano, era muito trabalhador, mas precisava de comando por que era "baldo de iniciativa, de método, de continuidade no esforço".
4. Vicente Coleoni, imigrante italiano a quem Quaresma emprestava dinheiro num momento difícil e que, vindo a prosperar em quitandas e na construção civil, jamais perdeu a gratidão. Vivia num palacete em Real Grandeza, com a única filha, Olga, afilhada do Major. Alma boa, reta, sempre fiel ao compadre, de quem, no entanto, não entendia as excentricidades.
5. Olga era muito querida pelo Major, e lhe ocupava no coração o lugar dos filhos que não tivera nem teria. ""Era pequena, muito mesmo". No seu rosto, nada de grego. Havia nos seus tragos muita irregularidade, mas a sua fisionomia era profunda e própria, com seus grandes olhos negros e luminosos. "A boca pequena, de um desenho fino, exprimia bondade, malícia, e o seu ar geral era de reflexão e curiosidade". Casou-se meio sem convicção com o Dr. Armando Borges, por quem perdeu toda a afeição. É de notar que, no romance, Olga parece muitas vezes exprimir as opiniões pessoais do próprio autor,
6. Ricardo Coração dos Outros– famoso por sua habilidade em cantar modinhas e tocar violão. Em começo, a sua fama estivera limitada a um pequeno subúrbio da cidade, em cujos "saraus" ele e seu violão figuravam como Paganini e a sua rabeca em festas de duques. Depois ela cresceu, e ele passou a "freqüentar e honrar" as melhores famílias do Meier, Piedade e Riachuelo. Já chegava a São Cristóvão e em breve (ele o esperava) Botafogo convidá-lo-ia, pois os jornais já falavam no seu nome..." – Era magro, baixo, pálido, quase sempre carregando um violão agasalhado numa bolsa de camurça. Vivendo para o violão e as modinhas, e para o ideal de chegar até Botafogo ficava alheio as contingências terrenas, isolado no seu cubículo de uma casa de cômodos, almoçando café, que ele mesmo fazia, e pão, indo à tarde jantar a uma tasca próxima". A sua figura de cabo recrutado à força era cômica: "a blusa (do fardamento) era curtíssima sungada; os punhos lhe apareciam inteiramente; e as calças eram compridíssimas e arrastavam no chão".

A turma do "Sossego"

Várias personagens estão ligadas à permanência de Quaresma no sitio:
7. Felizardo - muito trabalhador, foi contratado por Quaresma. Casado com a curandeira Sinhá Chica. "Era magro, alto, de longos braços, longas pernas, como um símio". Muito conversador, leva-e-traz. Rebentando a revolta da Esquadra, ocultou-se para fugir ao recrutamento.
8. Mané Candeeiro- outro contratado. Era claro e tinha umas feições regulares, cesarianas, duras e fortes, um tanto amolecidas pelo sangue africano. Falava pouco e cantava muito.
9. Sinhá Chica - mulher de Felizardo, "velha cafuza, espécie de Medéia esquelética, cuja fama de rezadeira pairava por todo o município". "Vivia sempre mergulhada no seu sonho divino, abismada nos misteriosos poderes dos feitiços, sentada sobre as pernas cruzadas, olhos baixos, fixos, de fraco brilho, parecendo esmalte de olhos de múmia, tanto ela era encarquilhada e seca."
10. Tenente Antonino Dutra– escrivão da Coletoria de Curuzu, encarna, juntamente com o Dr. Campos, os piores vícios de nossa política do interior. Apareceu no "Sossego" sob pretexto de angariar donativos para Nossa Senhora da Conceição e, na realidade, para tirar suas conclusões sobre a "política" do Quaresma. Atacou o Major pela imprensa e intimou-o a pagar 500.000 réis de multa, por ter enviado umas batatas para o Rio. A sua gordura "tinha um aspecto desonesto. Parecia que a fizera de repente e comia a mais não poder, com medo de a perder de um dia para outro".
11, Dr. Campos – médico, presidente da Câmara Municipal de Curuzu. "Jovial, manso, de grande corpo, era alto e gordo, pançudo um pouco, olhos castanhos, quase a flor do rosto, uma testa média e reta; o nariz, mal feito". Um tanto trigueiro, cabelos corridos e já grisalhos – era um caboclo, mas o bigode era crespo. Tinha de cor uma meia dúzia de receitas, nas quais conseguira enquadrar as doenças locais. Tendo proposto um golpe a Quaresma, como este recusasse, passou a persegui-lo.

A turma do Albernaz

Um numeroso grupo de personagens está ligado à casa do General Albernaz ou ao próprio: por amizade, parentesco, casamento com suas filhas...
12. Gal. Albernaz- "Nada tinha de marcial, nem mesmo o uniforme que talvez não possuísse. Durante toda a sua carreira militar, não viu uma única batalha, não tivera um comando, nada fizera que tivesse relação com a sua profissão e o seu curso de artilheiro". "O altissonante título de general... ficava mal naquele homem plácido, medíocre, bonachão, cuja única preocupação era casar as cinco filhas e arranjar pistolões para fazer passar o filho nos exames do Colégio Militar". "Era alto, o pescoço enterrado nos ombros, e o seu pince-nez era preso por um trancelim (corrente) de ouro que lhe passava por de trás da orelha esquerda. Em suas conversas, era indispensável uma referência a Guerra do Paraguai, dramatizada, importante". – O Sr. esteve lá, não foi, General ?" "- Não, adoeci antes e voltei ao Brasil. Mas o Camisão esteve..."
13. Era casado com Dona Maricota:"Muito ativa, muito inteligente, não havia dona de casa mais econômica, mais poupada e que fizesse render mais o dinheiro do marido e o serviço das criadas". A pequena cabeça de cabelos pretos contrastava muito com o seu corpo enorme.
Ismênia, Quinota, Zizi, Lalá e Lulu eram os filhos do casal. Ismênia era noiva de Cavalcanti, Quinota casou-se com Genelício e Lalá noivava com o tenente Fontes.
14. Ismênia - o autor acompanha o desenrolar do seu drama. "Era até simpática, com a sua fisionomia de pequenos traços mal desenhados e cobertos de umas tintas de bondade". Seu noivado com Cavalcanti durava anos: havia cinco que ele arrastava um curso de Odontologia de dois anos. "Na vida, para ela, só havia uma coisa importante: casar-se; mas pressa não tinha, nada nela a pedia". "Amorenada, o seu traço de beleza dominante era os seus cabelos castanhos, com tons de ouro, sedosos ate ao olhar". Psicologicamente, era de uma natureza pobre, incapaz de qualquer vibração sentimental. Mostrava uma bondade passiva, indolência de corpo, de idéias e de sentidos .Ante a fuga do noivo, cujo pedido de casamento fora tão comemorado, viu desmoronar o sentido de sua vida. Incapaz de reunir forças para reagir, humilhou-se, entristeceu-se, definhou, enlouqueceu, morreu.
15. Cavalcanti - Tinha olhos esgazeados, o nariz duro e fortemente ósseo. Durante o curso fora financiado nos livros, taxas e comida pelo futuro sogro. Formado, dirigiu-se para o interior e nunca mais deu notícias à noiva.
16. Contra-almirante Caldas- Digno êmulo do Albernaz, nunca embarcara, a não ser por pouco tempo, na Guerra do Paraguai. Certa vez, deram-lhe o comando de um navio inexistente. Como não conseguisse encontrá-lo, apresentou-se aos superiores e foi preso e submetido a julgamento. Absolvido, nunca mais caiu nas graças deles. Levou quarenta anos para chegar a capitão-de-fragata. Reformado no posto imediato, "todo o seu azedume contra a Marinha se concentrou num longo trabalho de estudar leis, decretos, alvarás, avisos, consultas que se referiam a promoção de oficiais. "Os requerimentos, pedindo a modificação de sua reforma, choviam sobre os sucessivos ministros... Viu fugir a última esperança por ocasião da revolta da esquadra, quando ficou ao lado de Floriano, calculando que ele necessitaria de militares daquela arma, ensejando-lhe, afinal, a oportunidade de comandar uma frota. "
17. Inocêncio Bustamante – Tinha a mesma mania demandista do Caldas. Renitente, teimoso, mas servil e humilde. Antigo voluntário da pátria, possuindo honras de major honorário, vivia com requerimentos pedindo diversas coisas: medalhas, honras de tenente-coronel...
A rebelião foi a sua oportunidade de ouro: imaginou e organizou o batalhão "Cruzeiro do Sul", cuja responsabilidade ficou de fato nos ombros de Quaresma, mas que deu, a ele, a patente tão ambicionada. No seu uniforme, talhado segundo os moldes dos guerreiros da Criméia, com uma banda roxa e casaquinha curta, "parecia ter saído, fugido, saltado de uma tela de Vítor Meireles... "Tinha uma, barba ‘mosaica’ e a sua especialidade, no batalhão, era cuidar da escrita, com caligrafia caprichada, tinta azul e vermelha.
18. Doutor Florêncio – encontramo-lo na festa do noivado de Ismênia. "Os anos e o sossego da vida lhe tinham feito perder todo o saber que porventura pudesse ter tido ao sair da escola. Era mais um guarda de encanamentos que mesmo um engenheiro".
19. Genelício – Se bem que um dos personagens mais importantes do livro, e estereotipado, convencional, caricatural. Nitidamente "plano", e brindado com todos os defeitos que mais aborreciam o próprio Lima Barreto: "Empregado do Tesouro, já no meio da carreira, moço de menos de trinta anos, ameaçava ter um grande futuro". "Não havia ninguém mais bajulador do que ele. Nenhum pudor , nenhuma vergonha!" "Sabia todos os recursos para se valorizar perante os chefes. "Na bajulação e nas manobras para subir, tinha verdadeiramente gênio. Era tido em grande conta, e juntava a sua segura posição administrativa um curso de direito a acabar". "Pequeno, já um tanto curva do, chupado de rosto, com um pince-nez azulado, todo ele traía a profissão, os seus gostos e hábitos. Era um escriturário".
20. Tenente Fontes – Noivo de Lalá, a terceira filha do Albernaz. Entendia de artilharia e serviu, na revolta, sob o comando de Quaresma - a quem, aliás, não se subordinava. "Era positivista e tinha de sua República uma idéia religiosa e transcendente. Fazia repousar nela toda a felicidade humana... " "Era magro, moreno carregado e a oval do seu rosto estava amassada aqui e ali". Falava com unção, a voz arrastada e nasal em tom de sermonário.
21. Dr. Armando Borges, outro tipo caricatural, como o Genelício. Casadocom Olga, e por isso enriquecido, não se satisfazia: "a ambição de dinheiro e o desejo de nomeada esporeavam-no". Médico do Hospital Sírio, em meia hora atendia a trinta ou mais doentes. Seu grande sonho era ser médico do Estado, e valeu-se da rebelião para alcançar seus objetivos. Desonesto, roubara escandalosamente de uma órfã rica - o que lhe valeu o desafeto da esposa. Achava que o seu pergaminho e o anel de doutor tornavam-no superior aos mortais comuns. Procurava ficar sempre em evidência, por amizades com jornalistas e publicação periódica de artigos, "estiradas compilações, em que não havia nada de próprio". Para dar a impressão à esposa e aos outros de que estudava muito, arranjava para ler novelas de Paulo de Kock em lombadas de títulos trocados... Sua última invenção para se manter superior foi a de "traduzir para o clássico as coisas que escrevia, invertendo os termos da oração, repicando-a com vírgulas e entremeando-a com meia dúzia de vocábulos arcaicos.

Uma observação final:

O leitor deve ter percebido que Lima Barreto critica impiedosamente os seus personagens. Pouquíssimos são poupados: Olga, dona Adelaide... Mesmo aqueles, como Quaresma, que representavam algo puro, ingênuo, honesto, são implacavelmente expostos ao ridículo. Outros já parecem criados de propósito para se obter unicamente esse efeito.
Certamente, temos aí um dos aspectos do homem deslocado e revoltado que foi Lima Barreto. Nos tipos caricaturais, sobretudo, ele dá vazão aos seus ressentimentos.

A problemática

A problemática central da obra e relativamente simples. Mas as questões levantadas secundariamente, como de passagem, por Lima Barreto, são tão numerosas:
1. O Tema da Loucura - há descrições e tentativas de entender o fenômeno da loucura, que é abordado em páginas comovedoras traindo, sem dúvida, a experiência amarga e a convivência do autor com a deficiência mental.
2. A Burocracia - outro aspecto ligado a experiência pessoal do autor. A burocracia é impiedosamente satirizada: na dificuldade em se "liquidar uma aposentadoria"; no ambiente nivelador e anônimo; no vale-tudo para se obter promoção e nas manobras do "especialista" Genelício.
3. Política no Interior do Brasil- Os "golpes" nos adversários; a política rasteira, de fofocas, perseguições; a utilização do cipoal de leis, decretos, portarias em vinganças mesquinhas contra os desafetos, desestimulando as iniciativas e a produção...
4. Os casamentos interesseiros da burguesia - o esforço de Albernaz para levar a bom termo o casamento das filhas. O casamento de Quinota com Genelício: "Creio que casei bem minha filha..." Armando Borges meditando a sua ascensão social e financeira pelo matrimônio. A educação errada das mulheres para o casamento, como se fosse o sentido da vida - o que explica o drama de Ismênia.
5. O Mito do "doutor"– contra ele Lima Barreto assesta suas baterias mais causticas e contundentes: Cavalcanti, na festa do pedido de casamento, e cercado por uma turma de basbaques, quase a adorá-lo como a um deus, pela simples razão de ter concluído o curso de Odontologia. Armando Borges, formado, passando a conversar "pausadamente, sentenciosamente, dogmaticamente", revirando no dedo o seu anelam, para marcar a infinita distancia que o separava de Quaresma. Ele resistia à idéia de ir visitar o padrinho da esposa, "gente sem fortuna e sem título, de outra esfera".
6. Miséria e improdutividade do interior - "O que mais a impressionou foi a miséria geral, a falta de cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido, da gente pobre". "Por que ao redor dessas casas, não havia culturas, uma horta, um pomar? Não seria tão fácil, trabalho de horas?" "De resto, a situação geral que o cercava, aquela miséria da população campestre que nunca suspeitara, aquele abandono de terras a improdutividade, encaminhavam sua alma de patriota meditativo a preocupações angustiosas. Via o Major com tristeza não existir naquela gente humilde sentimento de olidariedade, de apoio mútuo. Não se associavam para cousa alguma..."
7. Literatura do tempo - A "charge" do Dr. Armando Borges escrevendo seus artigos em "língua comum" e depois "traduzindo-os para o clássico" mediante alguns truques, e mais expressiva do que longas considerações. O famoso requerimento de Quaresma pedindo a oficialização do tupi não deixa de dar também uma alfinetada: ...certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil; certo também de que, por esse fato, o falar e o escrever em geral, sobretudo no campo das letras, se vêem na humilhante contingência de sofrer continuamente censuras ásperas dos proprietários da língua; sabendo, aliás, que, dentro do nosso país, os autores e os escritores, com especialidade os gramáticos, não se entendem no tocante a correção gramatical...
8. Críticas ao governo - Avolumam-se, a propósito de cada deficiência social, econômica ou política observada no romance. A política de colonização, com abandono dos brasileiros e favorecimento dos imigrantes: as taxas e impostos que esmagavam o produtor agrícola, deixado, por outro lado, as mãos dos atravessadores monopolistas. O ensino brasileiro, incapaz de formar doutores que pudessem combater uma simples peste de galinheiro...
9. A República– Sabe-se que Lima Barreto sempre guardou profunda mágoa da República, cuja implantação deixou o seu pai sem emprego, sobrevivendo à custa de favores de amigos. Espetáculos de prisões, de saques, de assassinatos, ele também viu, desde menino, na invasão da Ilha do Governador - episódio que, aliás, e mencionado neste romance. Isto tudo ajuda a explicar as muitas criticas e sátiras endereçadas ao novo regime, em contraste com acentuada benevolência em relação à Monarquia do Segundo Reinado. O positivismo, em particular, do qual eram adeptos os "pais da República", e asperamente estigmatizado, no seu culto à falsa ordem, a tirania, a ditadura, ao próprio regime, como se este fosse a chave da felicidade geral da humanidade.
O Mal. Floriano e o seu governo são impiedosamente dissecados: a apatia e a falsa auréola do Marechal, a bajulação que o cercava; as perseguições aos adversários, as prisões; a corrida interesseira para se colherem os frutos da rebelião da esquadra: promoções, patentes, comissões extras".
10. A Imprensa Frívola - atacada na campanha de insultos, troças e zombarias promovida contra o major Quaresma, no episódio do tupi, língua brasileira: "Não ficaram nisso; a curiosidade malsã quis mais. Indagou-se quem era, de que vivia, se era casado, se era solteiro. Uma ilustração semanal publicou-lhe a caricatura e o Major foi apontado na rua. Os pequenos jornais alegres, esses semanários de espírito e troça, então! eram de um encarniçamento atroz com o pobre major. Com uma abundância que marcava a felicidade dos redatores em terem encontrado um assunto fácil, o texto vinha cheio dele..."
11. Superstições - em duas ocasiões especiais, são mencionadas e satirizadas: nos esforços de Albernaz para curar Ismênia, recorrendo a espíritas, médiuns e feiticeiros ex-escravos; e na descrição de Sinhá Chica e seus "dotes ".

O Tema principal:
o choque de um patriota sonhador com a realidade
Sob esse aspecto, o tema do romance e desdobrado em três movimentos principais, correspondentes a três partes da obra.

a. Primeira etapa: predomínio da fantasia.
O major Quaresma nos é apresentado como indivíduo sem amigos, levando vida reclusa, incubando e engordando seu extraordinário patriotismo em leituras sem fim, em reflexões "me-ufanistas". Acredita piamente nos livros e, no seu pequeno mundo, vive do que é "nacional".
Observa-se que esta fase, de máxima defasagem entre sonho e realidade, também se veste de máxima comicidade: o sisudo Quaresma representando o Tangolomango, ou reproduzindo o livro goitacá de boas maneiras, só faltando chegar a "alta costura" de Adão; ou ainda, acreditando na oficialização do tupi-guarani...
A loucura é o resultado lógico de tamanha ruptura entre o sonho e a realidade.

b. Segunda etapa: equilíbrio entre realidade e fantasia.
Esta é a fase do Quaresma agrícola. E ainda cômico ver a concepção e a execução de sua estratégia agrária: os minuciosos cálculos baseados nos boletins da Associação de Agricultura Nacional; a parafernália de hidrômetros, pluviômetros, anemômetros, barômetros e outras inutilidades domésticas, logo dribladas pela realidade; a crença inabalável nas "terras mais ubérrimas do mundo"; a tenacidade com que tenta dominar os altos segredos do emprego da enxada, no que mais de uma vez teve de "beijar a terra, mãe dos frutos e dos homens"...
E o impossível acontece. Quaresma é tão honesto, tão puro, que sua aparentemente inexpugnável fortaleza de crenças não resiste ao assalto da realidade: as decepções se sucedem, e ele as acolhe, com um sofrido espanto; as formigas, as intempéries, os atravessadores, as perseguições de coletores e políticos em disponibilidade...
É o segundo choque de Quaresma; "a luz se lhe fez no pensamento..." a rede de posturas, códigos e preceitos, nas mãos de tais caciques, transformada em "instrumentos de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhes a iniciativa e a independência abatendo-as e desmoralizando-as..."
Estava a crise posta à mesa. A antiga visão ainda resiste. Reconhece a puerilidade, a ingenuidade do primeiro Quaresma, mas é este que, ainda vivo, tenta encontrar em Floriano um Sully, um novo Henrique IV para reformar a Pátria...

c. Terceira etapa: vence a realidade
E o humor cede ao patético. Na verdade, é bem o antigo Quaresma que, ao primeiro contacto, ainda não extrai a raiz quadrada de Floriano e da fauna que o cerca, que ainda pretende comandar um destacamento inspirando-se nos livros; que ainda larga um canhão apontado para o alvo e corre a casa conferir os cálculos... mas triunfam a sua candura, a sua honestidade e pureza; elas e que não o deixam compactuar com o crime, com a opressão, com o absurdo. Elas - ainda uma vez a estrada real para a verdade. E são elas, ainda que banham as páginas finais do romance – de um grande romance –com estas águas de humanidade e de sofrimento que não mais nos fazem rir, e que talvez nos puxem as lágrimas...
E a crise final, e a redenção de Quaresma: "A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete". "A que existia de fato, era a do tenente Antonino, a do Dr. Campos, a do homem do Itamarati".
Sim, este é o romance do verdadeiro patriotismo, redimido pela vida, paixão e morte do humilde Policarpo Quaresma, que lhe assinalou a sua verdadeira base, o lugar de onde é preciso, modestamente, começar. O romance não termina, depois de tudo, no desespero: "esperemos mais", e o último pensamento, sereno, de Olga - é de Lima Barreto.

(José Hipólito de Moura Faria )


Os Melhores Poemas (Manuel Bandeira - Organização de Francisco de Assis Barbosa)

Biografia

Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (Recife, 1886 - Rio de Janeiro, 1968) foi poeta, crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor.
Considera-se que Bandeira faça parte da geração de 22 da literatura moderna brasileira, sendo seu poema “Os Sapos”, declamado na segunda noite (15 de fevereiro) da Semana de Arte Moderna de 1922, por Ronald de Carvalho.
Juntamente com escritores como João Cabral de Melo Neto, Paulo Freire, Gilberto Freyre e José Condé, representa o que há de melhor na produção literária do estado de Pernambuco.
Manuel Bandeira possui um estilo simples e singelo, não compartilhando da dureza de poetas como João Cabral de Melo Neto. Aliás, numa análise entre as obras de Bandeira e João Cabral, veremos mais tarde que este, ao contrário daquele, visa a purgar de sua obra o lirismo.
Bandeira foi o mais lírico dos poetas modernistas de sua geração. Abordando temáticas cotidianas e universais, às vezes com utilização de "poema-piada", lidando com formas e inspiração que a tradição acadêmica considera vulgares; às vezes utilizando-se de estruturas e temáticas clássicas como o soneto. Em sua obra de estréia (Cinza das Horas/1917) estão composições poéticas rígidas, sonetos em rimas ricas e métrica perfeita, na mesma linha onde, em seus textos posteriores, encontramos composições como o rondó e trovas.
É comum criar poemas (como o “Poética”, parte de Libertinagem) que se transformam quase que em manifestos da poesia moderna, na medida em que pregam o ideário de libertação lírica. No entanto, suas origens estão nas poesias parnasiana e simbolista. Seus primeiros poemas expressam uma temática noturna, impregnada de imagens e sensações, como ocorre em “Paisagem Noturna”.
A imagem de bom homem, terno e em parte amistoso que Bandeira aceitou adotar no final de sua vida tende a produzir enganos: sua poesia, longe de ser uma pequena canção terna de melancolia, está inscrita em um drama que conjuga sua história pessoal e o conflito estilístico vivido pelos poetas de sua época. Cinza das Horas apresenta a grande tese: a mágoa, a melancolia, o ressentimento enquadrados pelo estilo mórbido do simbolismo tardio. Carnaval/1919, que virá logo após, abre com o imprevisível: a evocação báquica e, em alguns momentos, satânica do carnaval, mas termina em plena melancolia.
Em Ritmo Dissoluto/1924, seu terceiro livro, a felicidade aparece em poemas como “Vou embora para Pasárgada”, onde é questão a evocação sonhadora de um país imaginário, o “pays de cocagne”, onde todo desejo, principalmente erótico, é satisfeito, não se trata senão de um lugar intangível, de um “locus amenus” espiritual. Em Bandeira, o objeto de anseio restará envolto em névoas e fora do alcance. Lançando mão do tema português da “saudade”, poemas como Pasárgada e tantos outros encontram um símile na nostálgica rememoração bandeiriana da infância, da vida de rua, do mundo cotidiano das provincianas cidades brasileiras do início do século.
Além disso, o inapreensível é também o feminino e o erótico. Dividido entre uma idealização simpática às uniões vagas e platônicas e uma sensualidade e uma carnalidade voluptuosa, Manuel Bandeira é, em muitos de seus poemas, um poeta da culpa.
Com Libertinagem/1930, talvez o mais celebrado dos livros de Bandeira, adotam-se formas modernistas, abandona-se a metrificação tradicional e acolhe-se o verso livre. É um livro menos personalista. Se os grandes temas nostálgicos cedem ao avanço modernista, não é somente porque os sufocam o desfile fulminante de imagens quotidianas e os esquetes celebratórios do modernismo, mas também porque é um princípio motor de sua obra o reencenar a luta dos dois momentos sentimentais da alegria e da tristeza. O cotidiano “brasileiro” aparece ali, realçando o júbilo evocatório, com o pitoresco popular que se assimila, por exemplo em “Evocação do Recife”, ao tom triste e nostálgico; usa-se o diálogo anedótico/irônico para brindar fatos tão sórdidos quanto sua própria doença (“Pneumotórax”). Libertinagem dará o tom de toda a poesia subseqüente de Manuel Bandeira. Em Estrela da Manhã/1936, Lira dos Cinquent’anos/1940 e outros livros, as experiências da primeira fase darão lugar ao acomodamento do material lírico em formas mais brandas e às vezes mesmo ao retorno a formas tradicionais.

Manuel Bandeira por ele mesmo
“A história da minha adolescência é a história da minha doença. Adoeci aos dezoito anos quando estava fazendo o curso de engenheiro-arquiteto da Escola Politécnica de São Paulo. A moléstia não me chegou sorrateiramente, como costuma fazer, com emagrecimento, febrinha, um pouco de tosse, não: caiu sobre mim de supetão e com toda a violência, como uma machadada de Brucutu. Durante meses, fiquei entre a vida e a morte. Tive de abandonar para sempre os estudos.
Como consegui com os anos levantar-me desse abismo de padecimentos e tristezas é coisa que me parece a mim e aos que me conheceram então um verdadeiro milagre. Aos trinta e um anos, ao editar o meu primeiro livro de versos, A Cinza das Horas, era praticamente um inválido. Publicando-o, não tinha de todo a intenção de iniciar uma carreira literária. Aquilo era antes o meu testamento - um testamento da minha adolescência. Mas os estímulos que recebi fizeram-me persistir nesta atividade poética, que eu exercia mais como um simples desabafo dos meus desgostos íntimos, da minha forçada ociosidade. Hoje vivo admirado de ver que essa minha obra de poeta menor -de poeta rigorosamente menor- tenha podido suscitar tantas simpatias.
Conto estas coisas porque a minha dura experiência implica uma lição de otimismo e confiança. Ninguém desanime por grande que seja a pedra no caminho. A do meu parecia intransponível. No entanto saltei-a. Milagre? Pois então isso prova que ainda há milagres.” (Do livro "Poesia e Prosa")

Melhores Poemas

Desencanto

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre. (Teresópolis, 1912)

Análise: Perceba que este poema, o primeiro do livro Cinza das Horas, publicado em 1917, segue uma temática neo-romântica (morbidez, pessimismo, individualismo, solidão; apesar da estrutura se manter fiel aos modelos clássicos: versos de nove sílabas com rimas alternadas e o famoso “fecho de ouro” (“chave de ouro”) que é o arremate final. Atente também para a metalinguagem “faço versos”, que dá o tom confessional ao texto. (M.A.)

Paisagem Noturna

A sombra imensa, a noite infinita enche o vale...
E lá no fundo vem a voz
Humilde e lamentosa
Dos pássaros da treva. Em nós,
- Em noss'alma criminosa,
O pavor se insinua...
Um carneiro bale.
Ouvem-se pios funerais.
Um como grande e doloroso arquejo
Corta a amplidão que a amplidão continua...
E cadentes, metálicos, pontuais,
Os tanoeiros do brejo,
- Os vigias da noite silenciosa,
Malham nos aguaçais.
Pouco a pouco, porém, a muralha de treva
Vai perdendo a espessura, e em breve se adelgaça
Como um diáfano crepe, atrás do qual se eleve
A sombria massa
Das serranias.
O plenilúnio vai romper...Já da penumbra
Lentamente reslumbra
A paisagem de grandes árvores dormentes.
E cambiantes sutis, tonalidades fugidias,
Tintas deliqüescentes
Mancham para o levante as nuvens langorosas.
Enfim, cheia, serena, pura,
Como uma hóstia de luz erguida no horizonte,
fazendo levantar a fronte
Dos poetas e das almas amorosas,
Dissipando o temor nas consciências medrosas
E frustrando a emboscada a espiar na noite escura,
- A Lua
Assoma à crista da montanha.
Em sua luz se banha
A solidão cheia de vozes que segredam...
Em voluptuoso espreguiçar de forma nua
As névoas enveredam
No vale. São como alvas, longas charpas
Suspensas no ar ao longo das escarpas.
Lembram os rebanhos de carneiros
Quando,
fugindo ao sol a pino,
Buscam oitões, adros hospitaleiros
E lá quedam tranqüilos ruminando...
Assim a névoa azul paira sonhando...
As estrelas sorriem de escutar
As baladas atrozes
Dos sapos.
E o luar úmido...fino...
Amávico...tutelar...
Anima e transfigura a solidão cheia de vozes... (Teresópolis, 1912)

Análise: Apesar das alternâncias no número de sílabas poéticas (características que vão aparecer no modernismo e que estão sendo antecipadas aqui), o poema tem marcas nitidamente simbolistas: a presença de paisagens mais sugeridas do que descritas (“A lua/Assoma à crista da montanha./ Em sua luz se banha/A solidão cheia de vozes que segredam.../Em voluptuoso espreguiçar de forma nua”); de sinestesias (“a sombra imensa”, “muralha de treva”, “amplidão que a amplidão continua...”); aliterações e assonâncias (“A paisagem de grandes árvores dormentes./
E cambiantes sutis, tonalidades fugidias,/Tintas deliqüescentes/Mancham para o levante as nuvens langorosas.”). Perceba o tom lúgubre e a presença do luar que aproxima esta poesia das poesias de Álvares de Azevedo e de Alphonsus Guimaraens. (M.A)




Os Sapos


Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.

O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."

Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei!"- "Foi!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- A grande arte é como
Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo".

Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".

Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é

Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...(1918)

Análise: Um dos poemas mais importantes da carreira de Manuel Bandeira, apesar de ter sido escrito antes (1918) e publicado no livro Carnaval (1919), foi declamado por Ronald de Carvalho na noite de 15 de fevereiro de 1922, durante a Semana de Arte Moderna, causando imenso alvoroço. Os Sapos satiriza os poetas parnasianos (chamados de “príncipes” pela revista “Fon Fon”), principalmente Olavo Bilac, o “sapo-tanoeiro” que mostra como se deve fazer um poema parnasiano: “Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.” Ou “A grande arte é como/ Lavor de joalheiro.”, que já tinha aparecido em seu poema “Profissão de Fé”. Além disso a simplicidade dos versos (em medida velha – redondilhas menores) e as onomatopéias "Meu pai foi à guerra!" /- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!" reforçam o riso e a ironia da sátira. Repare no primeiro verso como os sapos parnasianos saem da toca: “A luz os deslumbra.” Em contraste com as três últimas estrofes que se referem aos poetas mais simples e mais populares, esquecidos pela “grande arte” como era vista a poesia. Além disso, o poeta finaliza com uma referência a uma cantiga de roda: “Sapo-cururu /Da beira do rio...”, em um nítido resgate da cultura popular e brasileira, característica importante em modernistas de épocas posteriores, como o Oswald dos manifestos (Pau-Brasil/1924; Antropofágico/1928) ou o Mário de Andrade de Macunaíma (1928). (M.A)




A Dama Branca

A Dama Branca que eu encontrei,
Faz tantos anos,
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu-me em todos os desenganos.

Era sorriso de compaixão?
Era sorriso de zombaria?
Não era mofa nem dó. Senão,
Só nas tristezas me sorriria.

E a Dama Branca sorriu também
A cada júbilo interior.
Sorria querendo bem.
E todavia não era amor.

Era desejo? - Credo! de tísicos?
Por história... quem sabe lá?...
A Dama tinha caprichos físicos:
Era uma estranha vulgívaga.

Ela era o gênio da corrupção.
Tábua de vícios adulterinos.
Tivera amantes: uma porção.
Até mulheres. Até meninos.

Ao pobre amante que lhe queria,
Se lhe furtava sarcástica.
Com uns perjura, com outros fria,
Com outros má,

- A Dama Branca que eu encontrei,
Há tantos anos,
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu-me todos os desenganos.

Essa constância de anos a fio,
Sutil, captara-me. E imaginai!
Por uma noite de muito frio
A Dama Branca levou meu pai.

Análise: Um poema que faz uma referência direta ao tema da morte, personificada na “Dama Branca”, uma mulher que é uma amante voraz: “Ela era o gênio da corrupção./Tábua de vícios adulterinos./Tivera amantes: uma porção./Até mulheres. Até meninos.”, pois fazia com que estes se apaixonassem por ela, ou seja, metaforicamente os matava e que já tinha se encontrado com o poeta (lembre-se que desde muito cedo Bandeira se viu às voltas com a presença da morte em virtude da tuberculose. O poeta vem fazendo referências ao comportamento desta morte personificada para finalizar confessando que esta presença constante na vida dele “imaginai!”, acabou levando-lhe o pai. (M.A)




Confidência

Tudo o que existe em mim de grave e carinhoso
Te digo aqui como se fosse ao teu ouvido.
Só tu mesma ouvirás o que aos outros não ouso
Contar do meu tormento obscuro e impressentido.

Em tuas mãos de morte, ó minha noite escura!
Aperta as minhas mãos geladas. E em repouso.
Eu te direi no ouvido a minha desventura
E tudo o que em mim há de grave e carinhoso.



Análise: Um poema da linha confessional de Bandeira. Perceba o tom de “íntimo diálogo” que ele estabelece com o/a leitor/a que bem pode ser a própria morte ou uma sugestão dela: “Em tuas mãos de morte, ó minha noite escura!/
Aperta as minhas mãos geladas.” Se for com a morte, presença marcante nos poemas neo-românticos dos primeiros livros do autor. Perceba a presença do individualismo e da morbidez. O poeta conversa com a própria morte para confessar a ela o que sente e sofre: “Te digo aqui como se fosse ao teu ouvido./Só tu mesma ouvirás o que aos outros não ouso /Contar do meu tormento obscuro e impressentido.” (M.A)

Não sei dançar

Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...
Abaixo Amiel!
E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.

Sim, já perdi, pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.

Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí por que vim a este baile de terça-feira gorda.
Mistura muito excelente de chás... Esta foi açafata...
- Não, foi arrumadeira.
E está dançando com o ex-prefeito municipal.
Tão Brasil!


De fato este salão de sangues misturados parece o Brasil...
Há até a fração incipiente amarela
Na figura de um japonês.
O japonês também dança maxixe:
Acugêlê banzai!
A filha do usineiro de Campos
Olha com repugnância
Para a crioula imoral.
No entanto o que faz a indecência da outra
É dengue nos olhos maravilhosos da moça.
E aquele cair de ombros...
Mas ela não sabe...
Tão Brasil!

Ninguém se lembra da política...
Nem dos oito mil quilômetros de costa...
O algodão de Seridó é o melhor do mundo... Que me importa?
Não há malária nem moléstia de Chagas nem ancilóstomos.
A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca.
Eu tomo alegria!

Análise: Um poema nitidamente modernista (na forma, pela liberdade de composição dos versos – sem métrica nem rima), pois enfoca aspectos típicos da vida cotidiana do início do século XX: a presença de tóxicos que eram muito comuns e consumidos pelos intelectuais da época: “Uns tomam éter, outros cocaína.” E dos ritmos que começavam a ser importados como o “jazz-band” dos negros americanos. O poeta insinua seu tom confessional, inclusive citando um filósofo pessimista (Ariel) e revelando aspectos de sua vida particular (autobiográficos): “Sim, já perdi, pai, mãe, irmãos./Perdi a saúde também./É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.”
Além disso, o poeta faz referência à imigração e à miscigenação de “raças”, classes sociais e culturas na formação do país: “De fato este salão de sangues misturados parece o Brasil.../Há até a fração incipiente amarela/Na figura de um japonês./O japonês também dança maxixe:/Acugêlê banzai!”. É como se o poeta usasse o baile da terça feira gorda (carnaval) para metaforizar e sugerir um país de misturas. Vários modernistas (e pré-modernistas – Graça Aranha/Canaã) detiveram-se nesta temática: Di Cavalcanti, pintor, conhecido como o “Maior Mulatista da Pintura Brasileira”, nas palavras de Mário de Andrade, além do Macunaíma e dos Manifestos já citados acima na análise do poema “Os Sapos”. O fato é que os modernistas queriam ressaltar a figura de um Brasil mais verdadeiro do que aquele exaltado em prosa e verso pelos românticos, daí a necessidade de uma visão mais aguçada e crítica de nossa formação e transformação.: “Tão Brasil!”. Esta mudança de paradigmas é tão importante que, na Sociologia, também alguns autores iniciam, nestes anos, seus estudos sobre a formação do país: Gilberto Freire (Casa Grande e Senzala), Sérgio Buarque de Hollanda (Raízes do Brasil).
No final, Bandeira faz uma verdadeira mistura de tudo no verso: “A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca.”, afinal, tudo é “tão Brasil”!!!! (M.A.)




Pneumotórax
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três...trinta e três... trinta e três... Respire.
............................................................................
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Análise: Um poema modernista, abusando de termos que fogem ao ideal parnasiano da “grande arte”, em virtude da presença de palavras antipoéticas: “Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos”. Presença de sinestesias e onomatopéias que sugerem musicalidade: “Tosse, tosse, tosse.”. Tema autobiográfico, pois o poeta teve tuberculose e sofreu muito com isso: “A vida inteira que podia ter sido e que não foi.”; temática do cotidiano: “Mandou chamar o médico:/— Diga trinta e três./— Trinta e três...trinta e três... trinta e três... Respire.” E auto-ironia: “— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?/— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.” Lembre-se que Bandeira morreu com 82 anos. Logo, ficar falando de morte o tempo todo ficava ridículo, o que fez com que o poeta desenvolvesse essa temática irônica e prosaica que também aparece em parte da obra de Álvares de Azevedo. Perceba a liberdade de composição de versos brancos em uma poesia condensada (curta). (M.A)

Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.




Análise: Este poema, publicado no livro Libertinagem (1930) é um dos poucos da poesia de Manuel Bandeira dentro da temática iconoclasta que marca tão bem a Primeira Geração Modernista, também chamada de Heróica pela atitude destruidora adotada. É importante frisar que ele segue a linha de poemas célebres como o “Ode ao Burguês” de Mário de Andrade (presente no livro Paulicéia Desvairada/1922). Repare a atitude de rebeldia contra um lirismo “funcionário público”, ou seja, um tipo de sentimentalismo que se comporta dentro de padrões pré-estabelecidos e que se curva a normas e regras de versificação e estilo: “Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.”. O poeta usa propositalmente versos bárbaros (versos que extrapolam 12 sílabas poéticas) para insinuar a rebeldia modernista; e exalta uma poética que valoriza: “Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais/Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção/Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis” e critica o lirismo: “Político/Raquítico/Sifilítico”. Nisso o último verso é significativo e estabelece uma intertextualidade com uma frase do Prefácio Interessantíssimo (Paulicéia Desvairada/1922) de Mário de Andrade: “Toda a canção de liberdade vem do cárcere!”




Evocação do Recife
Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
- Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!

A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
- Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pregões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
- Capibaribe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de meu avô.

Análise: O poema segue a linha do saudosismo da infância, tão caro aos poetas românticos de segunda fase, em especial na obra de Casimiro de Abreu. Nos versos Bandeira faz várias referências a como era o “seu” Recife: “Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado” ou “Rua da União.../Como eram lindos os montes das ruas da minha infância/Rua do Sol/(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)” para terminar com uma referência à casa de seu avô: “A casa de meu avô.../Nunca pensei que ela acabasse!/Tudo lá parecia impregnado de eternidade/Recife.../Meu avô morto./Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro/como a casa de meu avô.”
Vale a pela perceber também que o poeta faz três referências ao falar “errado” do povo: “E o vendedor de roletes de cana/O de amendoim/que se chamava midubim e não era torrado era cozido(...)A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros/Vinha da boca do povo na língua errada do povo/Língua certa do povo/Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil/Ao passo que nós/O que fazemos/É macaquear/A sintaxe lusíada” (M.A.)
A terceira referência é a do rio que corta o Recife e que também aparece nos poemas de outro pernambucano, o João Cabral de Mello Neto. Segundo o próprio Bandeira, “Na ‘Evocação do Recife’ as duas formas ‘Capiberibe – Capibaribe’ têm dois motivos. O primeiro foi um episódio que se passou comigo na classe de Geografia do Colégio Pedro II. [...] Certo dia, [o professor José Veríssimo] perguntou à classe: “Qual o maior rio de Pernambuco? ‘Não quis eu que ninguém se antecipasse e gritei imediatamente do fundo da classe: ‘Capibaribe!’ Capibaribe com a, como sempre tinha ouvido dizer no Recife. Fiquei perplexo quando Veríssimo comentou, para grande divertimento da turma: ‘Bem se vê que o senhor é um pernambucano! “(pronunciou ‘pernambucano’ abrindo bem o e) e corrigiu; ‘Capiberibe’. Meti a viola no saco, mas na ‘Evocação’ me desforrei do professor”. A outra intenção para a repetição era musical: “Capiberibe a primeira vez com e, a segunda com a, me dava a impressão de um acidente, como se a palavra fosse uma frase melódica dita na segunda vez com bemol na terceira nota. De igual modo, em ‘Neologismo’ o verso ‘Teodoro, Teodora’ leva a mesma intenção, mais do que o jogo verbal.” (Manuel Bandeira)

Profundamente

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Análise: Outro poema em tom confessional sobre a infância do poeta como “Evocação do Recife”. Uma referência ao fato de que ele não viu o tempo passar, nem percebeu que todas aquelas pessoas que marcaram seus primeiros anos estão mortas: “— Estão todos dormindo/Estão todos deitados/Dormindo/Profundamente.” Nele Manuel Bandeira rememora com extrema singeleza a lembrança de momentos tão importantes na vida do poeta. (M.A.)


Irene no céu

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:
— Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.

Análise: Irene, uma senhora negra que trabalhava na casa de Manuel Bandeira quando ele era criança vista em uma cena singela e surreal. Irene é tão boa que já teria lugar reservado no céu. Nem precisaria pedir licença para entrar, tal a sua intimidade.(M.A)



Vou-me Embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
Lá sou amigo do rei
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Análise: Um poema que surgiu da necessidade de evasão do poeta. O próprio Bandeira confessou que quando era menino se viu atraído pelo nome dessa cidade fundada por Ciro. Pasárgada é um lugar ideal projetado pelo poeta com tudo o que ele não pode fazer em sua infância de menino doente: “E como farei ginástica/Andarei de bicicleta/Montarei em burro brabo/Subirei no pau-de-sebo/Tomarei banhos de mar!; mesclado com cenas surreais: “Lá a existência é uma aventura/De tal modo inconseqüente/Que Joana a Louca de Espanha/Rainha e falsa demente/Vem a ser contraparente/Da nora que nunca tive” e referências ao nosso folclore, como já apareceu n’Os Sapos e em outras obras modernistas: E quando estiver cansado/Deito na beira do rio/Mando chamar a mãe-d'água/Pra me contar as histórias//Que no tempo de eu menino/Rosa vinha me contar”
Há também referências às novas tecnologias que povoavam o cotidiano dos modernistas: “Em Pasárgada tem tudo/É outra civilização//Tem um processo seguro/De impedir a concepção/Tem telefone automático/Tem alcalóide à vontade/Tem prostitutas bonitas/Para a gente namorar” e ao “mal-do século” tardio, que tanto assumbrava a vida do poeta: “E quando eu estiver mais triste/Mas triste de não ter jeito/Quando de noite me der/Vontade de me matar/Lá sou amigo do rei/Terei a mulher que eu quero/Na cama que escolherei”
É impossível perceber a intertextualidade com um outro poema romântico de temática evasionista. A “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Note que o número de sílabas poéticas dos dois poemas é o mesmo (redondilha maior-7 sílabas poéticas) e existe a idealização do “Lá”, que inclusive aparece as mesmas quatro vezes. (M.A.)






O Último Poema
Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos

A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

Análise: Um poema curto (lirismo condensado) dentro da linha confessional (individualismo) e singela que marca a lírica do poeta. Expressando toda a sua vontade de se fazer sentir de uma forma intensa: “ardente como um soluço sem lágrimas”.

Água Forte

O preto no branco,
O pente na pele:
Pássaro espalmado
No céu quase branco.

Em meio do pente,
A concha bivalve
Num mar de escarlata.
Concha, rosa ou tâmara?

No escuro recesso,
As fontes da vida
A sangrar inúteis
Por duas feridas.

Tudo bem oculto
Sob a aparência
Da água-forte simples:
De face, de flanco,
O preto no branco.

Análise: “Água forte” é uma técnica usada na gravura em metais. Consiste em derramar ácido para corroer aquilo que se quer deixar em baixo-relevo. O poema é extremamente erótico. São quatro quartetos em redondilha menor sugerindo a parte externa do aparelho reprodutor feminino: Isso pode ser visto nos versos “O preto no branco, (...) Pássaro espalmado (...)” Veja também “Em meio do pente,/A concha bivalve /Num mar de escarlata. /Concha, rosa ou tâmara?” O que, então seriam “As fontes da vida /A sangrar inúteis /Por duas feridas.”? Provavelmente os ovários da mulher. E agora? Toda a timidez amorosa do poeta é subvertida em um poema onde a sensualidade é expressa de uma forma muito sutil. (M.A)




Testamento

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros - perdi-os...
Tive amores - esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

Análise: Outro poema em versos simples (redondilha maior) de temática confessional. Nele o poeta expõe sua trajetória e seu trabalho poético. É possível perceber desde a primeira estrofe a sua pendência ao individualismo, ao sentimentalismo e à religiosidade; o poeta que teve toda a possibilidade de ser rico, perdeu tudo. Na segunda estrofe ele faz uma referência ao período em que foi se tratar de tuberculose na Europa (Clavadel/Suíça), mas defende o processo de criação poética como uma das coisas mais importantes de sua vida: “Mas o que ficou marcado/No meu olhar fatigado,/Foram terras que inventei.”. A terceira e a quarta estrofes são de um confessionalismo tão pungente que chega a doer. O poeta concretista José Paulo Paes chegou a fazer um “Epitáfio” a Manuel Bandeira a partir do pedido de desculpas: “Sou poeta menor, perdoai!”. Ele pegou a palavra menor e repetiu até fazer surgir outra palavra:menormenormenormenormenormenormenormenormenormnormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormemenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenormenor..enor..enorme.......ENORME.
Na última estrofe ele –de certa forma – pede desculpas por ter sido um modernista de primeira geração tão diferente das propostas do momento estético. Não sabia fazer os “versos de guerra” exigidos pelo contexto, mas daria a vida de bom grado, na luta que não lutou! (M.A)




O homem e a morte

O homem já estava deitado
Dentro da noite sem cor.
Ia adormecendo, e nisto
À porta um golpe soou.
Não era pancada forte.
Contudo, ele se assustou,
Pois nela uma qualquer coisa
De pressago adivinhou.
Levantou-se e junto à porta
- Quem bate? Ele perguntou.
- Sou eu, alguém lhe responde.
- Eu quem? Torna. – A Morte sou.
Um vulto que bem sabia
Pela mente lhe passou:
Esqueleto armado de foice
Que a mãe lhe um dia levou.
Guardou-se de abrir a porta,
Antes ao leito voltou,
E nele os membros gelados
Cobriu, hirto de pavor.
Mas a porta, manso, manso,
Se foi abrindo e deixou
Ver – uma mulher ou anjo?
Figura toda banhada
De suave luz interior.
A luz de quem nesta vida
Tudo viu, tudo perdoou.
Olhar inefável como
De quem ao peito o criou.

Sorriso igual ao da amada
Que amara com mais amor.
- Tu és a Morte? Pergunta.
E o Anjo torna: - A Morte sou!
Venho trazer-te descanso
Do viver que te humilhou.
-Imaginava-te feia,
Pensava em ti com terror...
És mesmo a Morte? Ele insiste.
- Sim, torna o Anjo, a Morte sou,
Mestra que jamais engana,
A tua amiga melhor.
E o Anjo foi-se aproximando,
A fronte do homem tocou,
Com infinita doçura
As magras mãos lhe cerrou...
Era o carinho inefável
De quem ao peito o criou.
Era a doçura da amada
Que amara com mais amor.


Análise: A poesia é de uma beleza e uma plasticidade maravilhosas. Só mesmo alguém atormentado pela presença da morte por toda a vida; a morte que não veio, a morte que levou seus parentes mais queridos, mas que sempre o deixava para trás pode ter tamanha sensibilidade. Seguindo o estilo da versificação do cordel, Bandeira conta uma história de um homem que ouve batidas na porta à noite. Pensando ser a morte (figura sinistra vestida de preto com uma foice – gadanha), tem medo e não abre a porta. Por ela, no entanto, entra uma linda mulher, mas anjo que demônio. Assim o homem vê nela a mais encantadora das amantes e se entrega com imensa felicidade. Perceba que conforme o tempo foi passando, Bandeira vai voltando a se referir à morte de uma maneira diferente: já não existe mais a angústia da morte em tenra idade, tão comum aos tuberculosos do ultra-romantismo (segunda fase), mas uma sensação serena de entrega a uma amante ou uma velha amiga. Essa sensação se aproxima de temáticas de Álvares de Azevedo expressas em poemas como “Lembranças de Morrer”, mas se afasta em poemas como “O poeta moribundo” : “Coração, por que tremes?/Vejo a morte,/Ali vem lazarenta e desdentada...//Que noiva!... E devo então dormir com ela?/Se ela ao menos dormisse mascarada!” Perceba que a maneira de ver a morte é exatamente o oposto em Manuel Bandeira.(M.A.)

Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.

A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.



Análise: Outro poema de linha sentimental/erótica. Para o poeta as almas não se comunicam, mas os corpos sim. Logo, se você quiser ser feliz, esqueça a alma e satisfaça o corpo...eles se entendem! Ou seja, é um convite a gozar os prazeres carnais ante a impossibilidade de atingir a alma da pessoa amada. Um poema que foge a toda a idealização e platonismo atribuído ao amor.(M.A.)

Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!

O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.


Análise: Último dos poemas escolhidos para este “passeio” pela obra de Manuel Bandeira, é um dos mais importantes do autor. Neste momento, fim de sua vida, o poeta já se encontra plenamente tranqüilo com a vinda da morte “a Indesejada das Gentes”. O poeta confessa que talvez tenha medo, mas muito provavelmente dirá que a vida foi boa e que a morte pode levá-lo. Em uma sucessão de metáforas ele diz que ela encontrará o campo lavrado (o trabalho feito e pronto para ser continuado nesta seara de poesias e sofrimentos). A casa estará limpa, como sua alma e sua consciência. E tudo organizado com cada coisa em seu lugar. Tudo pronto para a grande passagem, espera constante de uma vida inteira. O poeta morreu em 1968, com 82 anos de idade. (M.A.)


Melhores Poemas de João Cabral de Melo Neto
(Seleção: Antonio Carlos Secchin)

Modernismo:
O modernismo brasileiro foi um amplo movimento cultural que repercutiu fortemente sobre a cena artística e a sociedade brasileiras desde a primeira metade do século XX, e resultou, em grande parte , da assimilação de novas tendências artísticas e culturais lançadas pelas vanguardas européias anteriores à Primeira Guerra Mundial. Tradicionalmente, considera-se a Semana de Arte Moderna realizada em São Paulo, em fevereiro de 1922, o ponto de partida do modernismo no Brasil.
Didaticamente, divide-se o Modernismo em três fases: a primeira fase, mais radical e fortemente oposta a tudo que foi anterior, cheia de irreverência e escândalo; uma segunda mais amena, que formou grandes romancistas e poetas; e uma terceira, também chamada Pós-Modernismo por vários autores, que se opunha de certo modo a primeira e era por isso ridicularizada com o apelido de neoparnasianismo.
• Primeira Geração (1922-1930)
Caracteriza-se por ser uma tentativa de definir e marcar posições. Período rico em manifestos e revistas de vida efêmera. É a fase mais radical, justamente em conseqüência da necessidade de definições e do rompimento de todas as estruturas do passado. Caráter anárquico e forte sentido destruidor. Principais autores desta fase: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Antônio de Alcântara Machado, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, Guilherme de Almeida e Plínio Salgado.
• Características

Busca do moderno, original e polêmico.
“Língua brasileira” - falada pelo povo nas ruas.
Paródias - tentativa de repensar a história e a literatura brasileira.

• Segunda Geração (1930-1945)
Estende-se de 1930 a 1945, sendo um período rico na produção poética e também na prosa. O universo temático se amplia e os artistas passam a preocupar-se mais com o destino dos homens, o estar-no-mundo. “A segunda fase colheu os resultados da precedente, substituindo o caráter destruidor pela intenção construtiva, “pela recomposição de valores e configuração da nova ordem estética”.(Cassiano Ricardo)
A poesia prossegue a tarefa de purificação de meios e formas iniciada antes, ampliando a temática na direção da inquietação filosófica e religiosa, com Vinícius de Moraes, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, ao tempo em que a prosa alargava a sua área de interesse para incluir preocupações novas de ordem política, social e econômica, humana e espiritual. À piada sucedeu a gravidade de espírito, a seriedade da alma, propósitos e meios. Uma geração grave, preocupada com o destino do homem e com as dores do mundo, pelos quais se considerava responsável, deu à época uma atividade excepcional.
• Características
• Poesia
Nova postura temática - questionar mais a realidade e a si mesmo enquanto indivíduo
Tentativa de interpretar o estar-no-mundo e seu papel de poeta
Literatura mais construtiva e mais politizada.
Surge uma corrente mais voltada para o espiritualismo e o intimismo (Cecília, Murilo Mendes, Jorge de Lima e Vinícius)
Aprofundamento das relações do eu com o mundo
Consciência da fragilidade do eu - "Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo" (Carlos Drummond de Andrade - Sentimento do Mundo)
• Prosa
Romances caracterizados pela denúncia social, verdadeiro documento da realidade brasileira, atingindo elevado grau de tensão nas relações do eu com o mundo. O regionalismo ganha importância, com destaque às relações do personagem com o meio natural e social.
Os escritores nordestinos merecem destaque especial, por sua denúncia da realidade da região pouco conhecida nos grandes centros. O 1° romance nordestino foi "A Bagaceira" de José Américo de Almeida (1928). Esses romances retratam o surgimento da realidade capitalista, a exploração das pessoas, movimentos migratórios, miséria, fome, seca etc.
• Terceira Geração (1945- +/- 1980)
A literatura brasileira, assim como o cenário sócio-político, passa por transformações.
A prosa, tanto no romance quanto nos contos, busca uma literatura intimista, de sondagem psicológica, introspectiva, com destaque para Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles. Ao mesmo tempo, o regionalismo adquire uma nova dimensão com Guimarães Rosa e sua recriação dos costumes e da fala sertaneja, penetrando fundo na psicologia do jagunço do Brasil central. Um traço característico comum a Clarice e Guimarães Rosa é a pesquisa da linguagem, por isso são chamados instrumentalistas. Na poesia, surge uma geração de poetas que se opõem às conquistas e inovações dos modernistas de 22. Assim, negando a liberdade formal, as ironias, as sátiras e outras “brincadeiras” modernistas, os poetas de 45 buscam uma poesia mais “equilibrada e séria”. Os modelos voltam a ser os Parnasianos e Simbolistas. Principais autores (Ledo Ivo, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Geir de Campos e Darcy Damasceno). No fim dos anos 40, surge um poeta singular, pois não está filiado esteticamente a nenhuma tendência: João Cabral de Melo Neto.

João Cabral de Melo Neto.
João Cabral de Melo Neto é o mais importante poeta da geração de 45. Nasceu em 1920, no Recife, e morreu em 1999, no Rio de Janeiro. Filho e neto de donos de engenho, desde cedo apresentou interesse pela palavra, pela literatura de cordel nordestina e desejava ser crítico literário.
“E da feira do domingo/ me traziam conspirantes/ para que os lesse e os explicasse/ um romance de barbante./ Sentados na roda morta/ de um carro de boi, sem jante/ ouviam o folheto guenzo,/ a seu leitor semelhante,/ com as peripécias de espanto/ preditas pelos feirantes./ Embora as coisas contadas/ e todo o mirabolante,/ em nada ou pouco variassem/ nos crimes, no amor/ nos lances,(...)” Descoberta da literatura in A Escola das Facas (1980)
Tinha como primos dois nomes ilustres da cultura brasileira: Gilberto Freyre e Manuel Bandeira. Aos vinte anos já lia no original os grandes poemas da literatura estrangeira, como Apollinaire, Valéry e outros. Em 1942, apenas com o curso secundário concluído, muda-se para o Rio de Janeiro e, para sobreviver, ingressa no funcionalismo público.
Trazia consigo seu primeiro livro, Pedra do Sono (1941), de tendência surreal. Três anos depois, num segundo concurso, ingressa no Itamarati, passando a viver em várias cidades famosas do mundo, como Barcelona, Londres, Sevilha, Marselha, Genebra, Berna e outras.
Cronologicamente, João Cabral situa-se entre os poetas da geração de 45, mas trilhou caminhos próprios, dando continuidade a certos traços que já se delineavam na poesia de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, tais como a poesia substantiva, a objetividade e a precisão dos vocábulos.

Em sua obra encontram-se temas fundamentais :
• A preocupação cada vez maior com a realidade social, particularmente com o Nordeste,
• A reflexão permanente sobre a criação poética e artística (metalinguagem),
o aprimoramento de sua poética já em construção, a poética da linguagem-objeto, isto é, que procura sugerir o assunto retratado pela própria construção da linguagem, (presença de um despojamento cada vez maior de sua linguagem. Algumas palavras são usadas sistematicamente na poesia deste autor: cana, pedra, osso, esqueleto, dente, gume, navalha, faca, foice, lâmina, cortar, esfolado, baía, relógio, seco, mineral, deserto, asséptico, vazio, fome.)
• A Espanha, em uma comparação eterna com o seu Pernambuco natal,
• As diversas artes, sobretudo o surrealismo
Talvez se possa afirmar que a poesia de João Cabral tenha sido a primeira a estabelecer um corte profundo entre a poesia romântica e a moderna. Ao tratar a mulher como tema amoroso, por exemplo, o poeta o faz de forma distanciada, sem cair no sentimentalismo.
• Comentários de João Cabral:
“A palavra poeta me dá arrepios. Ela traz uma conotação de sujeito romântico, sonhador, irresponsável e até homossexual.”
“Eu escrevo para ser lido em português...digo, em nordestino”
• Comentários sobre João Cabral
“É quase impossível falar sobre João Cabral sem recorrer abundantemente aos seus próprios versos. Cabral, como Mallarmé no século passado, como Pound e Maiakóvski, no presente, é um poeta-crítico, ou seja, um poeta que analisa e critica o próprio fazer poético em seus poemas [...] a melhor crítica de poesia que se fez neste século não foi feita por críticos, mas por poetas, em poemas como (...) "Antiode", em "Psicologia da composição", em "A palo seco", de João Cabral. [...] Contra os que querem "poetizar o seu poema", fazê-lo dócil, submisso às concessões sentimentais, Cabral (...) opõe o dique de sua poesia-prosa, sua poesia-crítica, sua poesia-pedra.” Augusto de Campos, "Da antiode à antilira", texto de 1966, reeditado em Poesia, antipoesia, antropofagia, Cortez & Moraes, 1978.
“A obra de João Cabral, obra que está longe de seu término e que nos reserva ainda muitas surpresas, é hoje sem dúvida a que mantém maior unidade e coerência de produção, dentro de um alto gabarito, na poesia brasileira. Obra que honraria qualquer literatura e que em qualquer literatura seria rara pela sua qualidade [...] entre os poetas, especialmente na nova geração, a poesia de JCMN tem um lugar privilegiado: o lugar cartesiano da lucidez mais extrema.” Haroldo de Campos, "O geômetra engajado", texto de 1963, reeditado em Metalinguagem e outras metas, 4a. ed. revista e ampliada, Perspectiva, 1992.

Análise dos poemas
Pedra do Sono (1941)
Segundo Antonio Carlos Secchin, o primeiro livro de João Cabral, também é o “mais atípico”. “Nele predomina uma atmosfera surrealista*, visível no encadeamento de imagens logicamente dispares, nas reiteradas alusões ao mundo onírico (sonho), numa certa passividade frente às forças misteriosas do poema, que acabam por obstruir a faculdade crítica do poeta.” Ora, se Cabral vai se tornar o mais seco dos poetas, o “mais mineral”, este livro se opõe a esta tendência, como vamos observar nos poemas (e excertos) a seguir:

Poema da Desintoxicação

Em densas noites
com medo de tudo:
de um anjo que é cego
de um anjo que é mudo.
Raízes de árvores
enlaçam-me os sonhos
no ar sem aves
vagando tristonhos.
Eu penso o poema
da face sonhada,
metade de flor
metade apagada.
O poema inquieta
o papel e a sala.
Ante a face sonhada
o vazio se cala.
Ó face sonhada
de um silêncio de lua,
na noite da lâmpada
pressinto a tua.
Ó nascidas manhãs
que uma fada vai rindo,
sou o vulto longínquo
de um homem dormindo.


Perceba a sugestão onírica do homem sonhando, a fada; além das “raízes de árvores” se enlaçando aos sonhos. Uma cena completamente surreal, além da metalinguagem que já se insinua no poema, e que será importantíssima em toda a obra subseqüente do escritor pernambucano.


A André Masson
Com peixes e cavalos sonâmbulos
pintas a obscura metafísica
do limbo.

Cavalos e peixes guerreiros
fauna dentro da terra a nossos pés
crianças mortas que nos seguem
dos sonhos.

Formas primitivas fecham os olhos
escafandros ocultam luzes frias;
invisíveis na superfície pálpebras
não batem.

Friorentos corremos ao sol gelado
de teu país de mina onde guardas
o alimento a química o enxofre
da noite.




Uma outra constante da temática de Cabral já se insinua neste poema, a intertextualidade e as referências a outras artes. João Cabral sempre se interessou, inclusive, em divulgar artistas plásticos, tendo sido amigo de vários deles. André Masson (1896 – 1987) era um pintor francês que se iniciou no cubismo, mas integrou o primeiro grupo de surrealistas liderados por André Breton, chegando a ser um dos signatários do Manifesto Surrealista de 1924. O quadro acima, Germinação (de 1942) mostra algumas de suas características: retoma as cores e luzes, movimentando-as. Um novo espaço e uma nova temática são criados dentro dessa sequência. A estrutura negra, sempre presente nas obras anteriores, torna-se uma massa escura que permeia as formas orgânicas, movimentando-se em torno de um grande olho. As tonalidades amarelas, vermelhas e azuis diluem-se nessas formas. Uma nova profundidade se apresenta: uma atmosfera surrealista desenha-se na projeção de um mundo fantasmagórico.
Assim também é a poesia de Cabral neste primeiro momento de sua poética. Perceba as imagens sugeridas: “Cavalos e peixes guerreiros”... “Formas primitivas fecham os olhos”... “o alimento a química o enxofre”.... muito semelhante às sugestões oníricas do pintor surrealista.
* Surrealismo: movimento modernista do começo do século XX que se construiu, na literatura, sobre lapsos e lacunas sintáticas e sobre a quebra da estruturação lógica do pensamento e de sua tradução lingüística equivalente.


O Engenheiro (1945)
Após uma experiência na prosa poética em 1943, quando publicou Os Três Mal Amados, a partir do poema Quadrilha de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral começa a mudar seu estilo com a publicação do livro O Engenheiro (1945), dedicado àquele poeta mineiro. Para Secchin, “começa a predominar um ideal de rigor, de ordenação tão consciente quanto possível dos elementos lingüísticos que se articulam no texto.” Apesar de alguns poemas ainda mostrarem a face surreal das primeira composições, o livro inaugura a longa tradição dos poemas críticos, uma obsessão na obra de Cabral. Lembre-se que o poeta sonhava em ser crítico, antes de escrever. Aqui começa a aparecer a estrutura das quadras (estrofes de quatro versos) em medida velha, marca registrada do poeta, pois se aproxima do processo de versificação popular dos cordéis nordestinos.

As nuvens

As nuvens são cabelos
crescendo como rios;
são os gestos brancos
da cantora muda;

são estátuas em vôo
à beira de um mar;
a flora e a fauna leves
de países de vento;

são o olho pintado
escorrendo imóvel;
a mulher que se debruça
nas varandas do sono;

são a morte (a espera da)
atrás dos olhos fechados;
a medicina, branca!
nossos dias brancos.

Ainda de temática surreal e com referências à morte, mas já sem o sentimentalismo de outros poetas como Manuel Bandeira, por exemplo. Cabral está em um processo de definição dos rumos a serem trilhados e que serão a tônica de sua poesia.

O Engenheiro

A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.

O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.

(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro).

A água, o vento, a claridade
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.

O poema acima é extremamente importante na obra do poeta que, em virtude ele, ganhou o apelido de “engenheiro do verso”, por sua temática objetiva e por sua poesia substantivada. Repare que o poeta trabalha em O Engenheiro, a poesia a partir de substantivos concretos (“O lápis, o esquadro, o papel;/o desenho, o projeto, o número:/o engenheiro pensa o mundo justo,/mundo que nenhum véu encobre.”), dando a entender ao leitor como o poeta deveria trabalhar e qual será o caminho seguido por ele a partir de agora. Em outro poema do livro (A lição da poesia), Cabral usa de metalinguagem para exemplificar essa “luta com as palavras” no sentido de despojá-las de sentimentalismo: “A luta branca sobre o papel/que o poeta evita/luta branca onde corre o sangue/de tuas veias de água salgada.”

Psicologia da Composição (1947)
A partir de agora o poeta encontra plenamente o seu caminho de despojamento lingüístico. No livro estão importantes textos metalingüísticos, “espécie de ‘arte poética’ a ser ‘concretizada’ em poemas explicitamentes referenciais.”, como aborda o crítico da obra de Cabral em suas primeiras páginas.

Fábulas de Anfion
1 - O Deserto

No deserto, entre a
paisagem de seu
vocabulário, Anfion,

Ao ar mineral isento
mesmo da alada
vegetação, no deserto
que fogem as nuvens
trazendo no bojo
as gordas estações.

Anfion, entre pedras
como frutos esquecidos
que não quiseram

Amadurecer, Anfion
como se preciso círculo
estivesse riscando

Na areia, gesto puro
de resíduos respira
o deserto, Anfion


Fábula de Anfion é um poema narrativo , onde o anti-herói procura despojar a poesia de sua afetividade. Inspira-se no mito clássico da construção de Tebas, problematizando a insuficiência das palavras. Anfion, de acordo com a mitologia grega, era filho de Júpiter e Antíopa. Dotado de talento para a música, Anfion recebeu uma lira (no poema aparece como flauta) de Apolo. Ao som dessa lira, construiu depois a muralha de Tebas; as pedras iam-se colocando umas sobre as outras, sem qualquer esforço.
Cabral substituiu a lira por uma flauta rústica e interpretou o mito com liberdade de criação, associando os motivos temáticos "pedra" / "palavra". Ao final do poema o acaso vai frustrar o projeto de Anfion (depuração, mineralização dos objetos), por aparecer inexplicavelmente com toda uma vitalidade biológica. É uma força instintiva e anárquica que rompe com a aridez da vida ascética perseguida pelo poeta.




Psicologia da composição I –VII
I. Saio de meu poema
como quem lava as mãos.

Algumas conchas tornaram-se,
que o sol da atenção
cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.

Talvez alguma concha
dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto
extinto que o ar já preencheu;

talvez, como a camisa
vazia, que despi.








VII. É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer

São minerais
as flores e as plantas,
as frutas e os bichos
quando em estado de palavra.

É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.

É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza

Da palavra escrita


Repare neste, que é um dos principais excertos de Psicologia da Composição. No poema, Cabral demonstra, utilizando a metalinguagem, como tudo se resume a uma essência mineral quando em estado de palavra, quando no branco do papel... mineral. Como se poemas e coisas voltassem à sua substancialidade mineral. O poema desprovido de sentimentos e o poeta teorizando sobre ele e sobre as palavras e nomes, e objetos.
Um outro poema do livro (Antiode – contra a poesia dita profunda), também segue uma temática de crítica e despojamento metalingüístico. Nele o poeta se refere à poesia como fezes, para opor-se à idéia de flor, tão comum aos poetas sentimentais:

Antiode (contra a poesia dita profunda)
A

Poesia, te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,

gerando cogumelos
(raros, frágeis cogu-
melos) no úmido
calor de nossa boca.

Delicado, escrevia:
flor! (Cogumelos
serão flor? Espécie
estranha, espécie

extinta de flor, flor
não de todo flor,
mas flor, bolha
aberta no maduro.)

Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
suas intestinações.

Esperava as puras,
transparentes florações,
nascidas do ar, no ar,
como as brisas.

O primeiro elemento que evidencia a temática cabralina é a composição de um metapoema – o assunto em pauta é o próprio poema: a poesia faz da poesia seu tema.
Perceba o juízo crítico já na escolha do vocabulário, em que o poeta habilmente emprega as palavras flor e fezes.
Flor x fezes – a poesia enquanto flor remete ao lírico, à emoção, à idéia do objeto a refletir e simbolizar um estado de alma. É a representação do artefato como fonte de inspiração poética. Por outro lado, a palavra "fezes" não é um termo da ordem do sublime – no sentido de não ser algo altivo, ilustre ou belo.
"Antiode (contra a poesia dita profunda)", trata da reflexão de João Cabral, sobre o seu próprio conceito de como fazer poesia. Desse modo, emprega uma linguagem elaborada, que tem seu cerne nas palavras flor e fezes, não só para colocar frente a frente às duas vertentes que regem a poesia, mas ainda, ressaltar a "fabricação" do poema. Ou seja, tem-se a utilização de vocabulários aparentemente antagônicos (flor e fezes), como mostra o poeta, a servirem de ponte para estabelecer a ligação entre margens opostas, retratos de uma poesia lírica x uma poesia cerebral.

O Cão Sem Plumas (1950)
Os três livros abaixo têm como tema central a figura do rio Capibaribe. O rio – seja ele qual for – é altamente simbólico no inconsciente das pessoas e dos poetas.
Simbologia da Água
O rio, como escoamento das águas, é símbolo de fertilidade, de morte e de renovação. A corrente é a vida; a água descendo para o oceano e o ajuntamento das águas o retorno à indiferenciação (CHEVALIER, Jean e Alain GHEERBRANT (1982), Dictionnaire des Symboles, Paris, Éditions Robert Laffont.)
A água, em si, contém sempre este binómio de significados: causa de morte e fonte de vida. É binômio, porque os dois significados acabam por se verificar no mesmo momento. Exemplo disto mesmo é o beber água para matar a sede; ao verificar-se a "morte" da sede, sente-se uma "nova vida". Esta só acontece quando se dá aquela. Na tendência que tem de correr para baixo, a água conduz ao abismo (cataratas e enxurradas) e é sinal de morte, mas também se estende na horizontal (acalmia) e até corre para cima, em forma de seiva por exemplo, e, então, é sinal e causa de vida.
Na terra, a água é mãe e fonte de todas as coisas, está na origem da criação; ao contrário, a terra sem água, o deserto, é sinal de morte. Ela é fonte de vida e causa de morte; é criadora e destruidora, simultaneamente.
Porque não tem forma determinada, a água é imagem do caos, estado anterior à criação do mundo; com a ausência de vida e de harmonia, ela é desordem.
Os rios são agentes de fertilização; as chuvas e o orvalho trazem a fecundidade e manifestam a bondade divina, mesmo em forma de neve. A própria hospitalidade exige que se dê água fresca ao visitante e que os seus pés sejam lavados para assegurar a paz do seu repouso.
É também meio de purificação. Os muçulmanos, por exemplo, têm os ritos de purificação com água corrente, antes de entrarem nas mesquitas; os cristãos usam-na também nos ritos de aspersão e ablução. Toda a gente a usa para se lavar, tomar banho (morte à impureza e sujidade e vida de higiene e limpeza).
Sendo sinal de purificação física, ela é também figura da purificação moral no batismo, na aspersão com água benta, no "lavabo" da missa.
A água regenera porque também dá novas forças. Imaginem quando muito fatigados e sentados à borda da água corrente e cantante ou na margem dum rio repousarão e recuperarão forças, paz e nova vida. (http://www.cne-escutismo.pt/mistica/simbologia_2seccao.htm)
Heráclito de Éfeso, pensador grego dizia: "Tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo". E Platão ainda dizia de Heráclito: "Ele compara as coisas com a corrente de um rio - que não se pode entrar duas vezes na mesma corrente"; o rio corre e toca-se outra água. Seus sucessores dizem até que nele nem se pode mesmo entrar, pois que imediatamente se transforma; o que é, ao mesmo tempo já novamente não é. Além disso, Aristóteles diz que Heráclito afirma que é apenas um o que permanece; disto todo o resto é formado, modificado, transformado; que todo o resto fora deste um flui, que nada é firme, que nada se demora; isto é, o verdadeiro é o devir, não o ser - a determinação mais exata para este conteúdo universal é o devir. (http://www.mundodosfilosofos.com.br/heraclito.htm)

A Obra
Considerado por muitos como o seu livro mais importante, foi o último livro impresso na prensa manual do poeta, e inspirado na literatura de cordel.
O Cão sem Plumas é a descrição das condições sub-humanas nas palafitas e mocambos do Recife, tendo o rio Capibaribe como eixo central. A dicção é dura, como convém ao tema e ao autor, mas nunca resvala para o tom de panfleto. Segundo o crítico Antonio Secchin, “por sua linguagem antidiscursiva, o enfoque da pobreza nordestina escapa do tom panfletário a que tantas vezes o social foi submetido(...)” É um longo e hermético poema que denuncia não só o estado do rio, mas também a situação de exclusão da população ribeirinha, à margem de tudo.
O poema utiliza dois aspectos geográficos: a da geografia física, que reflete sobre as questões regionais propriamente ditas (a descrição do rio, sua desembocadura, seus mangues e o processo de seu desaguamento no mar), e a da geografia humana, que nos faz pensar não só sobre as condições sociais e econômicas do homem que habita suas margens, mas também sobre o que faz de um homem um homem, ou seja, o poema parte de uma reflexão sobre a região e se completa com outra de caráter mais universal.
Há ainda, para a compreensão do poema, de se relevar uma oposição: a que o autor criou entre as coisas como deveriam ser e as coisas como na realidade se apresentam. Assim, ao falar da água do rio, ele sonha com a água perfeita (a água do copo, a água da chuva azul, a água que se abre aos peixes, a água que teria os enfeites ou as plumas das plantas), ao mesmo tempo em que sofre ao constatar que ela não existe no rio Capibaribe, cuja água tem lodo, ferrugem e lama. Também, ao se referir ao habitante das margens do rio, o autor reflete sobre o que um homem devia ser (sonho e pluma) e se revolta diante da dificuldade de achar, naquele ser, um homem. Assim, ele já antecipa a temática de sua obra mais famosa: Morte e Vida Severina.
No poema, que se compõe de quatro momentos (Paisagem do Capibaribe, I e II; Fábula do Capibaribe, III e Discurso do Capibaribe, IV):


A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.



Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

Os versos a seguir, extraídos do II momento, ilustram com precisão o que foi dito acima:


Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
(...)
Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.
(...)
Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.

Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.

Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).


O Rio (1953)
“O poeta cede a voz ao próprio Capibaribe, que, sujeito da enunciação, narra seu percurso, da nascente ao Atlâtico”. (...) “Ultrapassando uma captação meramente geográfica da paisagem, a primazia será concedida à realidade humana que a povoa” e que vai aparecer mais fortemente em Morte e Vida Severina (1955)


Da lagoa da Estaca a Apolinário
Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar.
(...)

De Apolinário a Poço Fundo
(...)
Deixando vou as terras
de minha primeira infância.
Deixando para trás
os nomes que vão mudando.
Terras que eu abandono
porque é de rio estar passando.
Vou com passo de rio,
que é de barco navegando.
Deixando para trás
as fazendas que vão ficando.
Vendo-as, enquanto vou,
parece que estão desfilando.
Vou andando lado a lado
de gente que vai retirando;
vou levando comigo
os rios que vou encontrando.

(...)
Vou na mesma paisagem
reduzida à sua pedra.
A vida veste ainda
sua mais dura pele.
Só que aqui há mais homens
para vencer tanta pedra,
para amassar com sangue
os ossos duros desta terra.
E se aqui há mais homens,
esses homens melhor conhecem
como obrigar o chão
com plantas que comem pedra.
Há aqui homens mais homens
que em sua luta contra a pedra
sabem como se armar
com as qualidades da pedra.
(...)

Encontro com a Usina
Mas nas Usina é que vi
aquela boca maior
que existe por detrás
das bocas que ela plantou;
que come o canavial
que contra as terras soltou;
que come o canavial
e tudo o que ele devorou;
que come o canavial
e as casas que ele assaltou;
que come o canavial
e as caldeiras que sufocou.
Só na Usina é que vi
aquela boca maior,
a boca que devora
bocas que devorar mandou.
(...)

As duas cidades
(...)
Conheço todos eles,
do Agreste e da Caatinga;
gente também da Mata
vomitada pelas usinas;
gente também daqui
que trabalha nestas usinas,
que aqui não moem cana,
moem coisas muito mais finas.
(...)

A gente da cidade
que há no avesso do Recife
tem em mim um amigo,
seu companheiro mais íntimo.
Vivo como esta gente,
entro-lhes pela cozinha;
como bicho de casa
penetro nas camarinhas.
As vilas que passei
sempre abracei como amigo;
desta vila de lama
é que sou mais do que amigo:
sou o amante, que abraça
com corpo mais confundido;
sou o amante, com ela
leito de lama divido.
(...)
A não ser esta cidade
que vim encontrar sob o Recife:
sua metade podre
que com lama podre se edifica.
É cidade sem nome
sob a capital tão conhecida.
Se é também capital,
será uma capital mendiga.
É cidade sem ruas
e sem casas que se diga.
De outra qualquer cidade
possui apenas polícia.
Desta capital podre
só as estatísticas dão notícia,
ao medir sua morte,
pois não há o que medir em sua vida.
(...)

Os dois mares
A um rio sempre espera
um mais vasto e ancho mar.
Para a agente que desce
é que nem sempre existe esse mar,
pois eles não encontram
na cidade que imaginavam mar
(...)

Oferenda
Ao partir companhia
desta gente dos alagados
que lhe posso deixar,
que conselho, que recado?
Somente a relação
de nosso comum retirar;
só esta relação
tecida em grosso tear.


Morte e Vida Severina – Auto de Natal Pernambucano (1955)

Sem dúvida é o poema mais famoso do autor, apesar dele chamá-lo de “obra menor”. Morte e Vida Severina é o coroamento de uma temática iniciada com O Cão Sem Plumas e desenvolvida de forma criativa e inédita em O Rio. Fugindo do sertão, Severino se depara – “seguidamente com paisagens em que a morte exerce seu império, devido às injustiças sociais que marginalizam os camponeses nordestinos”, que também aparecerá mais tarde em Dois Parlamentos (1960).
Seguindo a mesma temática outrora explorada em obras como Vidas Secas (Graciliano Ramos – com quem Cabral compartilha, inclusive a mesma linguagem despojada e para quem dedica um poema no livro Serial, de 1961), e O Quinze (Raquel de Queiros), Cabral pode ser considerado a partir desta obra um escritor engajado e de temática social.
Em 1965, a pedido do escritor Roberto Freire, diretor do Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (TUCA), o músico Chico Buarque musicou o poema para a montagem da peça. A partir da década de 80 é considerado uma espécie de Hino do MST.
Podemos subdividir o livro Morte e Vida Severina basicamente em 18 partes distintas:

1ª) A peça é aberta com a explicação de Severino que se apresenta e diz a que vem:

O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.


2ª) A primeira morte é a da emboscada. Severino trava um diálogo com dois homens que carregam um defunto embrulhado na rede, saindo o triste estribilho " irmãos das almas ". Na cena acontece a denúncia daqueles que abusam do poder, matar para tomar posse da terra e jamais são discriminados. Ao mesmo tempo desperta a solidariedade do andarilho:

— E o que guardava a emboscada,
irmão das almas
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?
— Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mas garantido é de bala,
mais longe vara.
— E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?
— Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.
— E o que havia ele feito
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
— Ter um hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
— Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas
que podia ele plantar
na pedra avara?
— Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
os intervalos das pedras,
plantava palha.
— E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
— Tinha somente dez quadras,
irmão das almas,
todas nos ombros da serra,
nenhuma várzea.
— Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?
— Queria mais espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.


3ª) A Segunda forma de morte encontrada é a própria natureza agreste do sertão. O retirante vê o seu rio-guia, o Capibaribe, seco.

4ª) Temeroso de perder o rumo segue a viagem, indo em direção do som de uma cantoria e Severino depara com um velório. No momento das excelências, dois homens começam a imitar o som das vozes dos que rezam.
5ª) O retirante, cansado, interrompe a viagem e procura um trabalho. Severino retoma os motivos que o fizeram partir: está à procura da vida; de certa maneira, tenta esconder sua própria vida, ultrapassar os trinta, catando as migalhas que lhe permitem a sobrevivência.

6ª) Novo diálogo é estabelecido desta vez com uma mulher. Enquanto Severino vai desafiando o que sabe fazer, o leitor percebe que o conhecimento adquirido por ele não pode ajudá-lo, pois o que ele precisa saber para trabalhar com a mulher é pouca coisa, e justamente são estas coisas que ironicamente revelam quem ela é:

Muito bom dia senhora,
que nessa janela está
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?
Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?
Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra má
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.
Isso aqui de nada adianta,
poucos existe o que lavrar
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia por lá?
Também lá na minha terra
de terra mesmo pouco há
mas até a calva da pedra
sinto-me capaz de arar.


7ª) A caminhada prossegue e o retirante chega á Zona da Mata. Em contato com a terra mais branda e macia, já próxima do litoral e com rios que não secam, Severino percebe que aí pode se estabelecer, vê uma leve esperança balançar, decerto pela aparente beleza do lugar:

Mas não avisto ninguém,
só folhas de cana fina
somente ali à distância
aquele bueiro de usina
somente naquela várzea
um bangüê velho em ruína.
Por onde andará a gente
que tantas canas cultiva?
Feriando: que nesta terra
tão fácil, tão doce e rica,
não é preciso trabalhar
todas as horas do dia,
os dias todos do mês,
os meses todos da vida


8ª) A oitava cena vem em resposta aos versos que finalizaram a anterior. Por que não havia gente no lugar? Os trabalhadores levam um morto ao cemitério, um trabalhador da lavoura. Severino-observador ouve o que dizem os amigos do finado. Uma raiva até então contida vai crescendo, acompanhada do ritmo da poesia que salta em versos de redondilhas menores até versos eneassílabos, sofrendo cortes rápidos, o que dá a impressão de tumulto:

Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.

é de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
neste latifúndio.

Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.

é uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.

é uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.


9ª) O retirante apressa o passo a fim de chegar mais rapidamente ao Recife. Nesta cena, ele reitera o motivo de sua retirada: não foi pela cobiça, mas para defender sua própria vida. No entanto, as esperanças vão se rareando, porque em qualquer lugar a morte é sua sempre companheira

10ª) Chegando ao Recife, Severino pára para descansar e ouve a conversa de dois coveiros. Ambos discutem a possibilidade de arrematar bens com a morte, com promoções e gorjetas. A morte carrega as características do morto enquanto vivia, seu lugar depende de sua classe social em um cemitério também dividido, hierarquizado. Somente os retirantes são a " massa " da morte e morrem sem classificação:

O dia hoje está difícil
não sei onde vamos parar.
Deviam dar um aumento,
ao menos aos deste setor de cá.
As avenidas do centro são melhores,
mas são para os protegidos:
há sempre menos trabalho
e gorjetas pelo serviço
e é mais numeroso o pessoal
(toma mais tempo enterrar os ricos).
pois eu me daria por contente
se me mandassem para cá.
Se trabalhasses no de Casa Amarela
não estarias a reclamar.
De trabalhar no de Santo Amaro
deve alegrar-se o colega
porque parece que a gente
que se enterra no de Casa Amarela
está decidida a mudar-se
toda para debaixo da terra.
é que o colega ainda não viu
o movimento: não é o que se vê.
Fique-se por aí um momento
e não tardarão a aparecer
os defuntos que ainda hoje
vão chegar (ou partir, não sei).

11ª) O retirante se aproxima de um cais de rio, confessa não ter esperado muita coisa, pois tinha a consciência de que a vida não seria diferente na cidade. No entanto esperava que melhorassem suas condições de vida, com água, farinha e um pouco mais de expectativa de vida. Só que sem querer descobre, da conversa dos coveiros que seguia seu próprio enterro:
adiantado de uns dias;
o enterro espera na porta;
o morto ainda está com vida.

12ª) A décima segunda cena estabelece uma ruptura e ao mesmo tempo anuncia a próxima parte. Trata-se do encontro de Severino com a primeira forma de otimismo exterior ao personagem, um otimismo contido, possível em tais circunstâncias da vida. O retirante trava um diálogo com José, mestre carpina. Enquanto vai dando forma às suas angústias através de perguntas, recebe uma resposta.

13ª) A mulher de José anuncia a chegada do filho. O anúncio do nascimento do filho-esperança, filho do mestre carpina, que " saltou para dentro da vida ", num jogo contínuo de antíteses em que se opõem as desesperanças severinas à esperança.

Seu José, mestre carpina,
que habita este lamaçal,
sabes me dizer se o rio
a esta altura dá vau?
sabe me dizer se é funda
Severino, retirante,
jamais o cruzei a nado
quando a maré está cheia
vejo passar muitos barcos,
barcaças, alvarengas,
muitas de grande calado.
Seu José, mestre carpina,
para cobrir corpo de homem
não é preciso muito água:
basta que chega o abdome,
basta que tenha fundura
igual à de sua fome.
Severino, retirante
pois não sei o que lhe conte
sempre que cruzo este rio
costumo tomar a ponte
quanto ao vazio do estômago,
se cruza quando se come.


14ª) Aparecem para visitar o recém-nascido, amigos, vizinhos e duas ciganas. Ao tomarem a palavra os elementos de cada grupo-coral, tecem loas, fazem predições, trazem presentes, em cena que reconstitui no lamaçal (presépio) ribeirinho o milagre da vida. Severino é colocado fora da cena, como mero observador em contato com a pequena alegria, que faz o povo esquecer, por um tempo a dura realidade que carregam.

15ª) Presentes são levados à criança, reis magos da miséria repartem a pobreza:

Minha pobreza tal é
que não trago presente grande:
trago para a mãe caranguejos
pescados por esses mangues
mamando leite de lama
conservará nosso sangue.
Minha pobreza tal é
que coisa alguma posso ofertar:
somente o leite que tenho
para meu filho amamentar
aqui todos são irmãos,
de leite, de lama, de ar.
Minha pobreza tal é
que não tenho presente melhor:
trago este papel de jornal
para lhe servir de cobertor
cobrindo-se assim de letras
vai um dia ser doutor.


16ª) Ao tomarem a palavra, as duas ciganas tecem suas previsões. Num processo de perfeita identidade do homem ao meio em que ele vive, as videntes tiram lições de sobrevivência. A primeira cigana toma a palavra, antecipa para a criança o mesmo destino de seu pai; a segunda cigana prediz um destino, que levará o menino às máquinas e a paragens nos mangues melhores do Beberibe
Primeira Cigana a mesmo destino do pai
Atenção peço, senhores,
para esta breve leitura:
somos ciganas do Egito,
lemos a sorte futura.
Vou dizer todas as coisas
que desde já posso ver
na vida desse menino
acabado de nascer:
aprenderá a engatinhar
por aí, com aratus,
aprenderá a caminhar
na lama, como goiamuns,
e a correr o ensinarão
o anfíbios caranguejos,
pelo que será anfíbio
como a gente daqui mesmo.
Cedo aprenderá a caçar:
primeiro, com as galinhas,
que é catando pelo chão
tudo o que cheira a comida
depois, aprenderá com
outras espécies de bichos:
com os porcos nos monturos,
com os cachorros no lixo.
Vejo-o, uns anos mais tarde,
na ilha do Maruim,
vestido negro de lama,
voltar de pescar siris
e vejo-o, ainda maior,
pelo imenso lamarão
fazendo dos dedos iscas
para pescar camarão
Segunda Cigana à um novo destino
Atenção peço, senhores,
também para minha leitura:
também venho dos Egitos,
vou completar a figura.
Outras coisas que estou vendo
é necessário que eu diga:
não ficará a pescar
de jereré toda a vida.
Minha amiga se esqueceu
de dizer todas as linhas
não pensem que a vida dele
há de ser sempre daninha.
Enxergo daqui a planura
que é a vida do homem de ofício,
bem mais sadia que os mangues,
tenha embora precipícios.
Não o vejo dentro dos mangues,
vejo-o dentro de uma fábrica:
se está negro não é lama,
é graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a lama
do pescador de maré
que vemos aqui vestido
de lama da cara ao pé.
E mais: para que não pensem
que em sua vida tudo é triste,
vejo coisa que o trabalho
talvez até lhe conquiste:
que é mudar-se destes mangues
daqui do Capibaribe
para um mocambo melhor
nos mangues do Beberibe.


17ª) Chegam os vizinhos e cantam a beleza do recém-nascido. Os atributos que distinguem a criança são os mesmos que marcam toda a população restante. Criança magra, franzina, pálida, pequena, mas criança que vai fazer minar um pouco de vida:

E belo porque o novo
todo o velho contagia.
Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
Infecciona a miséria
com vida nova e sadia.
Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria.


18ª) No último segmento da peça, após a valorização da vida, o mestre carpina toma a palavra, dialoga com Severino, que é chamado mas permanece mudo:

É difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida
como a de há pouco, franzina
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.


Paisagem com Figuras (1955)
Este livro é o primeiro com temática espanhola na obra do poeta. São dezoito poemas entre os quais a Espanha aparece em dez. É clara a relação do poeta em estabelecer paralelos entre essas duas realidades geográficas (a secura, a pedra, o ambiente ‘agreste’) e memoriais. É, portanto, um livro de ruptura, pois a partir dele tem início um fundo intimista e confessional, marcados ainda pela linguagem despojada.

O vento no canavial

Não se vê no canavial
nenhuma planta com nome,
nenhuma planta maria,
planta com nome de homem.

É anônimo o canavial,
sem feições, como a campina;
é como um mar sem navios,
papel em branco de escrita.

É como um grande lençol
sem dobras e sem bainha;
penugem de moça ao sol,
roupa lavada estendida.

Contudo há no canavial
oculta fisionomia:
como em pulso de relógio
há possível melodia,
ou como de um avião
a paisagem se organiza,
ou há finos desenhos nas
pedras da praça vazia.

Se venta no canavial
estendido sob o sol
seu tecido inanimado
faz-se sensível lençol,

se muda em bandeira viva,
de cor verde sobre verde,
com estrelas verdes que
no verde nascem, se perdem.

Não lembra o canavial
então, as praças vazias:
não tem, como têm as pedras,
disciplina de milícias.

É solta sua simetria:
como a das ondas na areia
ou as ondas da multidão
lutando na praça cheia.

Então, é da praça cheia
que o canavial é a imagem:
vêem-se as mesmas correntes
que se fazem e desfazem,

voragens que se desatam,
redemoinhos iguais,
estrelas iguais àquelas
que o povo na praça faz.


Importante referência à riqueza (e manutenção da pobreza) regional, o canavial em questão remete a uma paisagem geográfica que também é símbolo da esperança de um povo oprimido, mas que pode de juntar na praça e, em redemoinho, transformar o mundo.

Cemitério pernambucano (Nossa Senhora da Luz)

Nesta terra ninguém jaz,
pois também não jaz um rio
noutro rio, nem o mar
é cemitério de rios.

Nenhum dos mortos daqui
vem vestido de caixão.
Portanto, eles não se enterram,
são derramados no chão.

Vêm em redes de varandas
abertas ao sol e à chuva.
Trazem suas próprias moscas.
O chão lhes vai como luva.

Mortos ao ar-livre, que eram,
hoje à terra-livre estão.
São tão da terra que a terra
nem sente sua intrusão.

A dura realidade, aqui descrita pelo poeta João Cabral de Melo Neto, esconde um misticismo amargo e penoso; não há como deixar de reconhecer nuanças da passagem bíblica (portanto mística) que lembra ao homem que ele é pó, e ao pó retornará (Gênesis 3, 19). A leitura dos últimos versos aponta para tal passagem; e, reforçando a leitura, o mar não é cemitério de rios por serem ambos — mar e rio — formados de água (primeira estrofe). O amargo da realidade está em o eu-lírico descrever a pobreza de quem é enterrado. Nenhum morto enterrado em tal cemitério tem direito a um enterro digno, a um caixão; nenhum, portanto, vem "vestido de caixão". Já eram mortos ao ar-livre, muitos antes de morrerem…

Uma Faca Só Lâmina (ou: Serventia das Idéias Fixas) (1955)
João Cabral dizia que era um poema sobre a obsessão, pois o compromisso do poeta era, segundo José Castelo em seu ensaio “O Homem Sem Alma”, “fazer da palavra uma lâmina capaz de tocar, remover, esculpir o mundo real”
É um longo poema de 88 estrofes de 4 versos (típica estrofação de sua obra). “Considerado um texto altamente conceitual, elaborado em torno de três elementos – faca, bala, relógio – de que são extraídas, como proposta ético-existencial, as noções de agressividade, carência e interiorização obsessivas, vistas como armas frente à diluição empobrecedora do dia-a-dia, como contundência frente ao torpor e à alienação.”(Antonio Carlos Secchin)

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.


Quaderna (1959)
Publicado em Lisboa, inaugura uma série de poemas sobre a mulher e sobre o universo feminino. Ainda existem referências importantes à Espanha, como ocorre em poemas como “Estudos para uma bailarina andaluza”, onde é nítida a comparação da mulher com o fogo.


Paisagem pelo telefone
Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,

sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,

a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,

Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,

sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangadas, que são velas
mais brancas porque salinas,

que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,

mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham

Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,

fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,

e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria

que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,

sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes mais acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.


A Mulher e a Casa

Tua sedução é menos
de mulher do que de casa;
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.

É perceptível no poeta uma nova temática que passa a surgir: a da poesia erótica, baseada na noção plástica da descrição de cenas onde é nítida a presença feminina.

Serial (1961)
Na mesma linha de Paisagens com Figuras (1955), este livro é, parte Nordeste, parte Espanha. Um dos poemas mais importantes é uma homenagem-dedicatória a Graciliano Ramos, verdadeira confissão do poeta sobre o modo de composição dos dois.

Graciliano Ramos

Falo somente com o que falo:
Com as mesmas vinte palavras
Girando ao redor do sol
Que as limpa do que não é faca:

De toda uma crosta viscosa,
Resto de janta abaianada,
Que fica na lâmina e cega
Seu gosto de cicatriz clara.

Falo somente do que falo:
Do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
Ali do mais quente vinagre:

Que reduz tudo ao espinhaço,
Creta o simplesmente folhagem,
Folha prolixa, folharada,
Onde possa esconder a fraude.

Falo somente por quem falo:
Por quem existe nesses climas
Condicionados pelo sol,
Pelo gavião e outras rapinas:

E onde estão os solos inertes
De tantas condições caatinga
Em que só sabe cultivar
O que é sinônimo de míngua.

Falo somente para quem falo:
Quem padece sono de morto
E precisa um despertador
Acre, como o sol sobre o olho:

Que é quando o sol é estridente,
A contra-pêlo, imperioso,
E bate nas pálpebras como
Se bate numa porta a socos.


A Educação pela Pedra (1966)
Um obra nitidamente dividida em duas partes: Nordeste e Não-Nordeste. Também pode ser dividida em: “temas pernambucanos” e “temas diversos”. Os versos começam a aparecer mais longos.
O título da coletânea A Educação pela Pedra (1966) indica a depuração atingida. A abordagem da realidade exige um contínuo processo de educação: os poemas devem ser trabalhados de forma rigorosa e sistemática para obterem a consistência e a resistência de uma pedra. Nesse processo, não cabem metáforas: o poeta deve buscar a simetria entre a estrutura da linguagem e da realidade representada.

A Educação pela Pedra

Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, freqüentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.


Tecendo a Manhã

1. Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2. E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.


O galo pode ser o poeta, que precisa “acordar” outros poetas, mas também pode ser o homem que vê a necessidade de “acordar” os semelhantes e propiciar a mudança social.


Catar Feijão

1. Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2. Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.

No poema, o artista, assim como o catador de feijões, deve selecionar os melhores grãos, a fim de construir uma poesia que fale, não pelo excesso, mas pela contenção, desfazendo- se de tudo o que for leve e oco, palha e eco. O que já foi dito não interessa repetição.

Museu de Tudo (1975)
Neste livro encontram-se poemas dispersos escritos a partir de 1966. O autor não gostava da ‘cara’ de ‘colcha de retalhos’ da obra. É o momento de maior tematização metalingüística do conjunto da obra cabralina, sem, todavia, a originalidade dos poemas anteriores.

Artista Inconfessável

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.


Perceba que no poema existe uma intertextualidade com o poema “Lutar com Palavras” de Carlos Drummond de Andrade. A metalinguagem serve para explicar ao leitor a dificuldade artesanal de trabalhar secamente a poesia.

Resposta a Vinícius de Moraes
Camarada diamante!

Não sou um diamante nato
nem consegui cristalizá-lo:
se ele te surge no que faço
será um diamante opaco
de quem por incapaz do vago
quer de toda forma evitá-lo,
senão com o melhor, o claro,
do diamante, com o impacto:
que incapaz de ser cristal raro
vale pelo que tem de cacto.


Lindíssima poesia dedicada ao amigo, poeta e diplomata Vinícius: “camarada diamante”. O poeta diz que não é um diamante/poeta nato (precisa se esforçar para ser). Incapaz do vago (por seu estilo direto e objetivo de trabalhar a poesia – oposto do “poetinha” Vinícius). E termina em um seco tom “confessional”: já que não consegue ser um “cristal raro”, pelo menos tem o valor do cacto. (Da secura, da aspereza e do espinho – nordestinos)

A Escola das Facas (1980)
O poeta acreditava que este seria seu último livro. Era para se chamar “Poemas Pernambucanos”. O livro apresenta poemas de tom memorialista em que o autor expõe fatos que marcaram a sua vida, como o nascimento ou a descoberta da literatura e do prazer de ler quando os trabalhadores da fazenda traziam os folhetos de feira para que ele lesse (“Descoberta da Literatura”, já vista no início deste resumo)

Autocrítica

Só duas coisas conseguiram
(des)feri-lo até a poesia:
o Pernambuco de onde veio
e onde foi, a Andaluzia.
Um, o vacinou do falar rico
e deu-lhe a outra, fêmea e viva,
desafio demente: em verso
dar a ver Sertão e Sevilha.


O desejo do poeta era ser crítico de arte e literatura. Não seguiu este caminho, mas se fez um dos mais críticos poetas da Literatura Brasileira. Um jogo de aproximação entre as duas tendências da lírica cabralina (a secura de Pernambuco) e o erotismo (de Sevilha).

Descoberta da Literatura

No dia-a-dia do engenho,
toda a semana, durante,
cochichavam-me em segredo:
saiu um novo romance.
E da feira do domingo
me traziam conspirantes
para que os lesse e explicasse
um romance de barbante.
Sentados na roda morta
de um carro de boi, sem jante,
ouviam o folheto guenzo ,
a seu leitor semelhante,
com as peripécias de espanto
preditas pelos feirantes.
Embora as coisas contadas
e todo o mirabolante,
em nada ou pouco variassem
nos crimes, no amor, nos lances,
e soassem como sabidas
de outros folhetos migrantes,
a tensão era tão densa,
subia tão alarmante,
que o leitor que lia aquilo
como puro alto-falante,
e, sem querer, imantara
todos ali, circunstantes,
receava que confundissem
o de perto com o distante,
o ali com o espaço mágico,
seu franzino com o gigante,
e que o acabassem tomando
pelo autor imaginante
ou tivesse que afrontar
as brabezas do brigante.


Faz parte da cultura popular nordestina a presença dos “Livros de Feira”, os famosos cordéis. A literatura de cordel é um tipo de poesia popular, originalmente oral, e depois impressa em folhetos rústicos ou outra qualidade de papel, expostos para venda pendurados em cordas ou cordéis, o que deu origem ao nome que vem lá de Portugal, que tinha a tradição de pendurar folhetos em barbantes. No Nordeste do Brasil, herdamos o nome (embora o povo chame esta manifestação de folheto), mas a tradição do barbante não perpetuou. Ou seja, o folheto brasileiro poderia ou não estar exposto em barbantes. São escritos em forma rimada e alguns poemas são ilustrados com xilogravuras, o mesmo estilo de gravura usado nas capas.
Neste poema, da linha autobiográfica (como “Autobiografia de um só dia”), o autor conta como foi inserido (e ajudou a inserir outros) na literatura popular através dos cordéis que eram trazidos para que ele lesse aos analfabetos trabalhadores de sua casa na infância pernambucana.

As frutas de Pernambuco

Pernambuco, tão masculino,
Que agrediu tudo, de menino,

É capaz das frutas mais fêmeas
E da femeeza mais sedenta.

São ninfomaníacas, quase,
No dissolver-se, no entregar-se,

Sem nada guardar-se, de puta.
Mesmo nas ácidas, o açúcar,

É tão carnal, grosso, de corpo,
De corpo para o corpo, o coito,

Que mais na cama que na mesa
Seria cômodo querê-las.

Um poema que revela o erotismo do autor a se referir às frutas nordestinas, com destaque especial às de sua Pernambuco natal. Realmente é uam festa de cores, aromas e sabores já cantadas, desenhadas e estudadas por sociólogos (Gilberto Freyre), artistas do “Brasil Holandês” e poetas populares.

AUTO DO FRADE (1984)
- poema para vozes -
(excertos: falas de Frei Caneca)

-Acordo fora de mim
como há tempos não fazia
Acordo claro, de todo,
acordo com toda a vida,
com todos cinco sentidos
e sobretudo com a vista
que dentro desta prisão
para mim não existia.
Acordo fora de mim
como vida apodrecida.
Acordar não é de dentro,
acordar é ter saída.
Acordar é reacordar-se
ao que em nosso redor gira.
Mesmo quando alguém acorda
para um fiapo de vida
como o que tanto aparato
que me cerca me anuncia:
esse bosque de espingardas
mudas, mas logo assassinas,
Sempre à espera dessa voz
Que autorize o que é a sua sina,
Esses padres que as invejam
Por serem mais efetivas
Que os sermões que passam largo
Dos infernos que anunciam.


O poema enfoca a análise dos momentos finais vividos pelo Frei Caneca, mártir da Confederação do Equador. Frei Caneca foi líder em dois momentos da história de Pernambuco: a Revolução de 1817 e a de 1824. Foi fuzilado em 1825.
Nesta obra, o autor passa do social (Morte e vida Severina) ao histórico, sem que haja uma negação do primeiro, mas sim a sua incorporação, não através de uma apreensão de incidentes apenas anedóticos (o que, sem dúvida, compõe também o quadro da narrativa histórica), mas pela exploração poética das tensões básicas, encarnadas por Frei Caneca, entre a razão pragmática do político rebelde e as elucubrações mais abstratas, lógicas, retóricas, filosóficas.


O Calor das Coisas (Nélida Piñon)

Modernismo:
No Brasil o Modernismo tem três fases, também chamadas de gerações.
• A Primeira tem início com a Semana de Arte Moderna, em 1922 e termina em 1930. Entre suas características estão a iconoclastia, a liberdade de criação, a reverência e a rebeldia
• A Segunda (de 1930 a 1945) é mais social, mais participativa e mais engajada. Nela estão romancistas com influência marxista, além dos introspectivos, no sentido de aprofundar as análises psicológicas (Neo-Realismo). É um período marcado pelo engajamento. A segunda fase se afasta da primeira em virtude de uma retomada das estruturas tradicionais do romance e de um enfoque mais maduro de análise do momento histórico pelo qual o país estava passando. É nela que se destacam os prosadores do Neo-Regionalismo.
• Já a Terceira, também chamada de pós-moderna (pós-45), é mais introspectiva, eclética e universalista. Preocupa-se mais com questões existenciais, afastando-se da abordagem regional e, muitas vezes, social da segunda geração. Pelo tempo que se estende, apresenta várias tendências, daí o sincretismo das características. Nélida Piñon se encontra, juntamente com Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Caio Fernando Abreu e Lygia Fagundes Telles, na terceira fase. Em seus contos não há uma abordagem de problemática social como fome, miséria, retirantes... O interesse destes autores é pela sondagem dos problemas humanos, como a angústia de um delator, a dependência quase sexual de quatro amigos, o trauma da obesidade, a sexualidade...

Biografia
Nélida Cuiñas Piñon ( Nascida no Rio de Janeiro em 1937) é imortal da Academia Brasileira de Letras (Eleita em 27 de julho de 1989 para a Cadeira n. 30, na sucessão de Aurélio Buarque de Holanda).
Foi eleita presidente da Academia em 5 de dezembro de 1996. (É a primeira mulher, em 100 anos de existência da ABL, a integrar a Diretoria e ocupar a presidência da Casa de Machado de Assis, no ano do seu I Centenário.).
Filha de Lino Piñon Muiños e Olivia Carmen Cuiñas Piñon, espanhóis de origem galega. Seu nome é um anagrama do nome do avô, Daniel.
Na infância, seus pais a estimularam para a leitura, deram-lhe livros e levaram-na a viajar. Aos dez anos foi para a Galiza, onde ficou dois anos. Essa vivência foi fundamental para a futura escritora, que em sua obra irá revelar, sobretudo, o amor por duas pátrias: a Galiza e o Brasil.
Formou-se em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e foi editora e membro do conselho editorial de várias revistas no Brasil e exterior.
Estreou na literatura com o romance Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, publicado em 1961, que tem como temas o pecado, o perdão e a relação dos mortais com Deus, através do diálogo entre a protagonista e seu anjo da guarda.
Desde o início a escritora filiou-se ao movimento que, depois de Guimarães Rosa, se orienta pela renovação formal da linguagem. No romance Fundador, publicado em 1969, Nélida Piñon abandona a base realista que comanda a criação literária analógica do mundo e põe em cena personagens históricos e ficcionais, criando um mundo eminentemente estético. Em 1972, publica A Casa da Paixão, romance em que irrompe o tema do desejo e da iniciação sexual. Publica a seguir livros de contos e mais dois romances, até sair o romance autobiográfico A República dos Sonhos, em 1984, narrando a saga de uma família enraizada na Galiza que emigra para o Brasil. Em A Doce Canção de Caetana, romance de denúncia política publicado em 1987, faz uma incursão ao universo de uma cidade do interior, Trindade, à época da mentira do milagre brasileiro, no começo dos anos 70. No livro O Pão de Cada Dia, de 1994, Nélida Piñon deixa de lado a moderna ficção na qual se consagrou e empreende uma reflexão profunda sobre as inquietações do homem, através de fragmentos que exprimem emoções, idéias e pensamentos.
Ao longo de mais de 35 anos de ininterrupta atividade criadora, Nélida Piñon é um testemunho de que, entre as possíveis maneiras de se exprimir que o homem tem a seu dispor, a palavra é aquela que mais diretamente o põe a nu consigo mesmo, quer diante dos seus problemas individuais, quer frente às suas mais dramáticas contradições enquanto ser social, político, cultural, economicamente determinado.
Sua obra já foi traduzida em inúmeros países, tendo recebido vários prêmios ao longo de mais de 35 anos de atividade literária. O mais recente foi o Prêmio Príncipe de Asturias das Letras de 2005, conferido na cidade espanhola de Oviedo. Concorreram a este prêmio escritores de fama mundial, como os norte-americanos Paul Auster e Philip Roth, e o israelense Amos Oz; ao todo, mais de dezesseis países estavam representados no concurso.

Obras

• Romances
Guia-mapa de Gabriel Arcanjo (1961)
Madeira feita de cruz (1963)
Fundador (1969)
A casa da paixão (1977)
Tebas do meu coração (1974)
A força do destino (1977)
A república dos sonhos (1984)
A doce canção de Caetana (1987)
Até amanhã, outra vez (1999)
Cortejo do Divino e outros contos escolhidos (2001)
Vozes do deserto (2004)

• Contos
Tempo das frutas (1966)
Sala de armas (1973)
O calor das coisas (1980)
O pão de cada dia: fragmentos (1994)


Características
• Quebra das estruturas tradicionais do texto.
• Falta de linearidade no texto: texto labiríntico, fluxo de consciência, utilização de catarse.
• Narrativas desprovidas de clímax, preocupadas com a sondagem interior.
• Análise do que não se mostra na superfície da letra e do texto.
• Força o leitor a embrenhar-se no texto para entender a psicologia das personagens, seus dramas e desacertos.
• Preferência pela primeira pessoa. Personagens confusas que expõe as angústias e desacertos.
• Textos crivados de referências poéticas: metáforas, metonímias, anacolutos.
• Preocupação com o fazer narrativo, com o trabalho artesanal do escritor, na linha de Guimarães Rosa.
• Funde oposições e contraria valores, como a simbologia cristã e o pensamento clássico, o ritual sagrado e o comportamento profano.
• Sua narrativa é uma simulação de labirinto que é preciso percorrer, entre erros e acertos, para chegar ao significado difícil, ao cerne da análise dos dramas humanos.
• Fina ironia, atemporalidade e desgeografização.
• Crítica a (convite à reflexão sobre) valores cristalizados na sociedade.

Para saber mais:
Trecho da entrevista de Nélida à Sylvia Colombo da Folha de São Paulo
Folha - A sra. não crê que a relação entre os escritores latino-americanos e a política era mais intensa na época das ditaduras do que hoje? Não acha que os autores estejam se distanciando da política?
Piñon – “A literatura não é uma reportagem e precisa de distância para analisar. Não acredito que tenha havido tempo suficiente para que surja, por exemplo, um romance importante na Argentina que se debruce sobre sua crise desesperadora. Mas há, ao longo da história, relatos que permitem analisar essas sociedades. Essa análise não tem que ser incandescente. Muitas vezes, bastam alusões. Nesse sentido, a AL forneceu grandes autores, levando-se em conta o tempo limitado de sua existência normativa e embora a pisquê dos nossos países esteja tomada pela dor dos vencidos.
Nos nossos mais importantes romances, percebe-se um protagonismo invisível. É como se o autor estivesse, além da história que conta, falando com um interlocutor fora da obra e que não é latino-americano. Há na nossa novelesca uma ânsia dramática de auto-esclarecimento.” (Nélida Piñon reflete sobre legado da AL / Folha de São Paulo / Ilustrada – 25 janeiro 2003)

Trechos da entrevista dada a Wagner Lemos:
Wagner Lemos – Como foi esse processo de sua formação literário-cultural?
Nélida Piñon - Tive a sorte de ler tudo que queria. Jamais sofri censura. Portanto, tive acesso a toda classe de escritores que foram, de verdade, meus mestres. Lia-os com volúpia, aprendendo como forjavam eles um texto que me induzisse a crer em seus inventos. Percebi, cedo,que para armar uma estrutura narrativa, não bastava talento. A ele era mister aduzir trato diário com a palavra, com a emoção, que a epopéia secreta do texto filtra, definir o tempo que é simultaneamente sutil e pesado, entrelaçar espaços e ação, aprender a pensar enquanto cria, sem perder de vista a carnalidade misteriosa dos personagens. Jamais esquecer que a ilusão, de qualquer parágrafo, tem por fim, convencer o leitor de que é ele cúmplice da nossa odisséia narrativa.

Wagner Lemos – Quais autores a influenciaram? Com que aprendeu mais?
Nélida Piñon - Insisto que aprendi com todos. Com autores e seres fora do âmbito literário, uma vez que circulei intensamente por formas de vida e de literatura. Fui e sou leitora atenta da história, da teologia, da filosofia. A narrativa, porém, abriu-me caminhos e consolidou minha consciência moral e estética. Assim, leio e releio Homero, Shakespeare, Proust. O russo Dostoievski mostrou-me a escuridão que mantém o humano prisioneiro de apetites bestiais. No Brasil, Machado de Assis está invicto. No mundo que provém da península ibérica, das raízes latinas, reverencio Cervantes. Poderia acrescentar tantos nomes. Homenageio, porém, a Monteiro Lobato e Karl May. A aqueles autores que, de tanto mentirem e difundirem as peripécias, abriram a porta da aventura por onde eu circulava absorvendo os postulados da liberdade.
Qualquer avanço que terei acumulado, originou-se de uma devoção intensa ao meu ofício. A persistência em prosseguir, em jamais desistir de considerar meus textos imperfeitos. Sempre em busca do meu Graal que constituía simplesmente de uma página relativamente limpa, próxima à minha aspiração literária. (...)

Wagner Lemos – Para finalizar, Nélida por Nélida...
Nélida Piñon - Sou taurina e meu ascendente é sagitário. Conjugação de terra e fogo. Será que me explica? Quanto aos sonhos, eles são discretos. Talvez quisesse aprender a viver, a morrer. A manter a dignidade, a seguir considerando a compaixão e a misericórdia sentimentos altaneiros, indispensáveis para o exercício da nossa humanidade. Será que falei demais?

Sobre a autora, por Sônia Régis em posfácio do livro A Casa da Paixão:
“É preciso decifrar o que não se mostra na superfície da letra, em sua aparência, mas no que o escritor inscreve com a sua palavra e o seu corpo no argumento da história.
A obra de Nélida exige do leitor que se embrenhe na sua intriga para perder-se no mistério da própria criação, pois o seu texto é crivado de referências ao movimento da gênese poética. Sua narrativa inaugura assuntos para fundar o tema da invenção, organizando a linguagem para criar um corpo que sobreviva no tempo e ocupe um lugar na memória. Signo de um conhecimento que se perfaz no resgate da origem, a palavra traça uma viagem no enredo de sua ficção, confundindo o real com o imaginário na tarefa de criar uma poética que atualize a tensão que indaga a sua própria originalidade”
“... o discurso literário de Nélida Piñon funde oposições e contraria valores já estabelecidos (a simbologia cristã e o pensamento clássico, o ritual sagrado e o comportamento profano), ocupando-se com a transgressão de todas as regras para afirmar a invenção como um impulso unificador.”
“Sua narrativa se propõe como simulação de um labirinto que é preciso percorrer, entre erros e acertos, para chegar ao seu significado, difícil e escamoteado, ao cerne escondido, que exige acompanhar a circularidade infinda da palavra que se quer imortal.”
“A linguagem é uma das fantasias do ser humano, sua forma mais enfática de realidade, de conhecimento. É ação e forma, modo de tornar visível o invisível, de exercer o poder (divino) da criação, de imprimir vida e extrair conhecimento. A criação é uma impossibilidade que o artista escamoteia pelo recurso da imitação da natureza e o verbo uma impossibilidade que o escritor simula no desejo de emendar a aparência da terra, corrigindo o mundo. A invenção conjuga o desejo da criação, que se funda na inveja divina, e o verbo gerador para inaugurar corpos significantes, fundando inícios.”

Obra: O Calor das Coisas:
O livro de contos O Calor das Coisas foi publicado em 1980, sendo o terceiro livro de contos da autora. São treze narrativas curtas nas quais é fácil perceber o estilo (fragmentação da sintaxe e da narrativa, na tentativa de desvendar o sentido intrínseco do comportamento das personagens que vivem em mundos intensamente simbólicos) e as preocupações da autora: a importância dada à manipulação do discurso e à palavra; a complexa literatura que visa a sondagem interior de personagens angustiadas que tentam ser acessíveis aos outros seres; a fina ironia. Nélida trata das paixões humanas, alternando textos líricos com textos mais políticos, racionais e eróticos.
É possível perceber que, além das metáforas, a figura de linguagem que mais aparece em seus textos é o anacoluto, tanto no nível sintático, quanto no próprio texto, criando fragmentação e descontinuidade, que modificam o sentido fixo e abrem espaço para uma leitura mais reflexiva.
Suas narrativas desejam ser registro (função histórica), resgate (função religiosa) e invenção (poética) ao mesmo tempo. O percurso de suas personagens é uma viagem pelo estranho espaço de si mesmas e pela terra, onde são exilados, perdidos entre objetos e pessoas que os desconcertam e ferem, mas que servem de caminho para o autoconhecimento. Para ela, o “... ser humano está de passagem pela terra, sofrendo o exílio da carne, por isso seus personagens são convocados para organizarem a narrativa dessa paixão criadora, que os projeta para além da própria vida; vencendo os limites do corpo eles vencem os limites da morte, pois o corpo é o único limite da morte.”
Um elemento importante de descoberta que aparece em seus contos é o erotismo, onde é possível ao leitor perceber a dualidade corpo/alma; vergonha/desejo, gozo/culpa. Para Nélida, o corpo, que é a casa da paixão, lugar onde a vida se faz pela concepção do verbo eterno, é também casa do espírito, do significado fecundado pela paixão do (auto) conhecimento. A vida resulta da aprendizagem dessa transubstanciação, da passagem da luz pela aridez e opacidade de uma natureza que é preciso redescobrir para possuir a exaltação gozosa da matéria.”

Contos de O Calor das Coisas:


• O Jardim das Oliveiras (1ª pessoa)
• As Quatro Penas Brancas (3ª pessoa)
• “I Love My Husband” (1ª pessoa)
• O Ilustre Menezes (1ª pessoa)
• Finisterre (1ª pessoa)
• Tarzan e Beijinho (1ª pessoa)
• O Revólver da Paixão (1ª pessoa - monólogo)

• Coração de Ouro (3ª pessoa)
• O Sorvete É um Palácio (1ª pessoa)
• Disse um Campônio à Sua Amada (1ª pessoa)
• A Sereia Ulisses (1ª pessoa)
• O Calor das Coisas (3ª pessoa)
• A Sombra da Caça (1ª pessoa)


Análises dos contos:

O Jardim das Oliveiras (1ª pessoa) Alexandro Bavário
Narrado em 1ª pessoa a um interlocutor ausente chamado Zé (que pode ser um amigo do narrador, o leitor ou o povo em geral), o narrador-personagem se utiliza da técnica do fluxo de consciência para fazer um desabafo (cheio de frases de efeito: “...herói de um episódio anônimo, autor de um hino cantado em agonia e silêncio.” (...) O sol arrastara o bairro para a praia, não via alma na rua.”) sobre o que ocorreu com ele durante o domínio do estado autoritário brasileiro na ditadura militar. O conto trata da falta da liberdade de expressão e de ir e vir; da moral reinante (omissão da burguesia); do medo; das perseguições, torturas e desaparecimentos.
O próprio narrador teria sido submetido (nove anos antes – “nove anos, três meses e onze dias”, segundo os próprios algozes) à tortura, o que o levou a delatar vários companheiros e este episódio o persegue como uma marca de covardia e vergonha: “...Logo que abri a porta, o homem me pegou pelo braço. Não adianta fugir, ele disse. E seu gesto não foi de ladrão, de quem vai contra a lei. Parecia certo dos próprios atos, não se importando que o vizinhos o surpreendessem....(...) Segui-o esbarrando contra as paredes, o sangue me havia deixado ainda que eu o reclamasse de volta. Passamos pelo porteiro entretido com a empregada do 203. Um cabra safado e inútil....”
Havia um carro esperando e nele três pessoas (“Um crioulo, um mulato, um branco, a etnia carioca”). Levam o narrador a um local para interrogatórios (“Havia na sala unicamente três cadeiras, um de nós ficaria de pé”). O narrador expõe ao leitor/Zé o seu medo, já havia sido torturado:“O Medo grudado na pele ia-me asfixiando, os poros logo entupiam-se de ânsia e vontade de vomitar. Havia, porém, na consciência uma brecha através da qual eu implorava aos intestinos, ao ventre, à alma, que não me humilhassem uma vez mais. A memória revivia a tortura, a dor florescente, a cabeça estilhaçada em mil estrelas, a calça borrada de merda, a urina solta pelas coxas até alcançar a unha do pé. A desesperança de saber que a dignidade dependia de um corpo miserável a serviço da força alheia.(...) ... a verdade é que sou um covarde, nasci com medo e morrerei com a intensidade deste astro.(...) O medo dorme no meu travesseiro, trato de domesticá-lo, torná-lo amigo.”
Um dos homens pergunta por Antônio e o narrador se recorda de um Antônio que fora torturado (“...expulsando o sangue em golfadas, o olhar empedrado que até o final evitou a palavra que, condenando os vivos, melhor teria esclarecido os últimos instantes de um homem.”) após ter sido delatado por ele. Os torturadores não o deixam esquecer desse episódio. (“ Tão pouco que me ficou como herança um pesadelo que disfarço diariamente. Não quero admitir que Antônio e um tormento mastigado a cada garfada, o excesso de sal de todo o repasto. Não vivo sem a sua sombra, você e eu sabemos. Ele trepa junto comigo...”). O narrador faz reflexões como a que analisa que os torturadores disfarçaram a repercussão da morte de Antônio, acusando-o de trair os companheiros e fugir para Paris. Insistentes, perguntam se ele não tem visto Antônio e ele diz que não. Os diálogos vão sendo intercalados por reflexões do narrador sobre a tortura e seus medos. (“Antônio encontrava-se naquela sala. Vivo, ardente, combatendo o mundo em tudo igual ao que havia deixado antes de partir, Não sei se o crucificávamos, ou ele a nós torturava.”)
O narrador permanece preso, mas no meio da noite um dos carrascos vem buscá-lo e leva-o embora: “ Despediram-se sem uma palavra e, jogado perto de casa, provavam conhecer os meus hábitos, os bares a que ia, os meus passos. Acalentavam o sangue e o suor de um país com o torniquete da neutralidade e da supremacia.”(...) “Ao mesmo tempo que ressuscitamos Antônio, tenho a consciência marcada de modo a jamais esquecer que lhes fico outra vez mais devendo a vida. Eles que me puderam matar e não o quiseram. Devo-lhes tanto o que sou que, juntos, reconstituímos Antônio, fizemos a vida pulsar de novo no centro de seu coração amado.”
No dia seguinte, em casa o narrador desabafa; diz que mantém um relacionamento com Luiza, a quem busca como um refúgio: “Nada mais quero que amar aquela mulher. Abdicar da perspectiva coletiva e concentrar-se no universo pessoal é a essência da felicidade”
A partir daqui o narrador tece considerações sobre a figura e a presença do estado policial que obriga as pessoas à submissão: “O Estado é a eterna visita em minha casa, mesmo quando dela se ausenta. E, sendo ele assim meu amigo, a vida torna-se compatível sob seus cuidados.” (...) “Não tenho inimigos, ou melhor, eles não têm nomes e rostos.”(...) “Passarei pela fome brasileira com orgulho ferido...” (...) “ Sou um animal que ao lado das derrotas contabiliza o medo. Quem me educou foi este país onde vivo, amo, sou o que me permitem ser.”(...) “Uma vez que não posso arbitrar sobre minha vida, pois encontro-me sob a tutela da violência e do absolutismo, passo a vivê-la pela metade. Assim, quem sabe do meu destino não sou eu. É o outro. Quem me assalta na esquina é o dono da minha vida. Me faz suicidar-me. Me faz desaparecer, apaga a minha memória, escasseia os dados que me registram.”
Lembra do avô que tinha dinheiro para que as pessoas o respeitassem e pensa em como as aparências movem a máquina social. Rebela-se em um parágrafo muito parecido com “poética” de Manuel Bandeira: “Merda para as palavras sem sangue, merda para os que explicam a vida com polidez fria e correção gramatical”
Em um longo trecho, lembra-se da tortura que havia sofrido e a descreve com requintes de perversidade: “Nada lhes bastava. Quem oferecesse a perna, ficava a dever-lhes o olho. A vida mesmo que se desse não chegava. O que esses homens vorazes ainda reclamavam? A alma, o futuro, o eterno ranger das juntas? Como deuses, ambicionavam traçar o destino, ainda que aos gritos eu jurasse nada mais tenho a dizer. Esbofeteavam o meu rosto, a descarga elétrica vinha nos testículos, no círculo do ânus. Eu balançava, perdia os sentidos. Voltava à vida não querendo achegar-me a ela. O que tinha a vida a prometer-me para eu defendê-la com bravura? O chefe exercitava os dedos afiando a navalha contra o meu sexo. Vamos, trema que eu te capo. Eu tremia, babava, fechava os olhos, rezava. Como será o retrato de uma carne mutilada, saberiam fotografar a minha dor, a última vibração do nervo abatido? Os algozes me arrastavam como escravo, me amavam, tocavam no meu corpo, iam às minhas partes. Aos prantos, supliquei muitas vezes, não sei de nada, já lhes disse tudo. Como um porco, eu fornecia carne e alegria aos homens. Permitia que esculpissem em mim outra criatura, me parissem entre a placenta da suspeita e da covardia.”(...) “Borrei as pernas, a alma, tenho o fedor como indelével marca sacerdotal”
O que ocorre é que o narrador se sente a última das pessoas, pois é um covarde e delatou os amigos e companheiros durante uma sessão de tortura nove anos antes. Por conta disso, e de ter sido novamente levado a interrogatório, chega em casa e – sem linearidade, em um fluxo de consciência que mistura sua vida atual com a passada – expões todas as angústias e medos. Com esse processo ‘catártico’ quer purgar seus ‘pecados’ e conseguir o perdão de um Zé (companheiro ou leitor)?

As Quatro Penas Brancas (3ª pessoa)
O que chama a atenção neste conto é a maneira como a escritora trabalha a linguagem, de forma inventiva e experimental. O foco narrativo é em terceira pessoa, logo o narrador é um observador que tem a seu favor a possibilidade da onisciência, ou seja, pode analisar livremente todas as quatro personagens principais: Rubem (um escritor/jornalista); seu amigo (amante?) Pedro; Colombo e Bulhões.
Não há marcações de mudança de discurso que passa do indireto ao direto (fala das personagens) e ao indireto livre (reflexões das personagens), sem que o leitor perceba. A este experimentalismo de construção narrativa é importante estar muito atento. Perceba um pouco do estilo da autora neste trecho e sua transcrição abaixo:
“Eu faço amor só de porre. E você? Eu só na base da água, água do filtro. Foram para o bar. Rubem, o que amava com água e Pedro, que expelia bagas de álcool. Beberam até o amanhecer. Para onde vamos daqui? Até a vida do outro lado, disse Rubem.
Em casa, Rubem programou, escrevo o artigo hoje mesmo, à tarde passo no jornal, amanhã estou livre para desaparecer. Pedro apanhou-o pela gola, na portaria do jornal. Não adianta fugir. Sempre que partir para Niterói, vou atrás e não deixo. Teu destino vai cumprir-se no Rio de Janeiro, nas artérias solitárias dessa cidade.”
Que em prosa ‘normal’ deveria aparecer assim:
“- Eu faço amor só de porre. E você?
- Eu só na base da água, água do filtro.
Foram para o bar: Rubem, o que amava com água e Pedro, que expelia bagas de álcool. Beberam até o amanhecer.
- Para onde vamos daqui? (Perguntou Pedro)
- Até a vida do outro lado, disse Rubem.
Em casa, Rubem programou: escrevo o artigo hoje mesmo, à tarde passo no jornal, (e) amanhã estou livre para desaparecer.
(Mais tarde, à saída da redação) Pedro apanhou-o pela gola, na portaria do jornal.
- Não adianta fugir. Sempre que partir para Niterói, vou atrás e não deixo. Teu destino vai cumprir-se no Rio de Janeiro, nas artérias solitárias dessa cidade.”

O conto pode ser dividido em quatro partes, como se fossem ‘pacotes’, uns dentro de outros:
Na primeira a ex-mulher de Rubem (Alice), aparece para cobrar a pensão alimentícia atrasada. Ficamos sabendo que eles tiveram quatro filhos e é Alice que cuida deles. (Há um ultimato: “A mulher disse, te espero amanhã até as sete da noite.) Pede dinheiro a Pedro, que não tem. (“Depressa, senão a mulher me come. Ora, então coma ela primeiro. Já não tenho forças, comi todas as mulheres do mundo.”) Pega a barca para Niterói e vai até a casa do pai que empresta o dinheiro, mas faz cobranças e acusações: “Não estou aqui para sustentar as tuas mulheres. É uma só, pai. E depois deu-lhe netos, não foi?(...) O problema também é de vocês, gritou com raiva, só diminuindo o tom de voz na barca, bem no meio da baía.”
A segunda parte começa quando um vendedor de amendoim mal vestido (Colombo) pede para se sentar ao lado dele e começa a contar sua vida. Diz que hoje está assim, mas já foi rico: “...estou assim agora, mas já fui de andar em boate grã-fina, dar gorjeta, as mulheres vinham lamber na minha mão.” Rubem acha que a vida de Colombo supera a a dele e pede para que conte toda a sua história. (“E onde eu estava? o vendedor entusiasmou-se. Na hora em que a tua mãe te pariu”.)
Neste momento o narrador dá uma pausa na cena da barca e troca de personagem. Em contraponto, inicia uma nova história dentro da primeira, tendo Colombo como personagem eixo. Ele conta (em uma narrativa que sugere homossexualidade), que era rico e tinha um amigo: Bulhões. (“Bulhões ia direto ao seu coração. A mãe botou ali manteiga em vez de uma região rica de veias estofadas, engolindo sangue e sabedoria. Deixava-se convencer. Sobretudo porque as mulheres haviam-lhe afirmado, especialmente na cama, que mais sublime que o amor só a amizade. O amor ficava na cama, nos lençóis sujos. Ele próprio amava com dificuldade, como se arrancasse do sexo uma espinha de peixe.”)
Colombo e Bulhões se desentenderam, Bulhões desapareceu por sete dias e deixou Colombo desesperado. Quando voltou, convenceu Colombo a comprar uma fazenda. (“Até chegar ao seu corpo, deveria vencer anos de resistência. Sentiu sua barba contra o rosto, foi gozado, porque o constrangimento não me deixou ser feliz”). O trabalho na fazenda não dá certo (“Bulhões era um desastre quando se empenhava em salvar a colheita, o leite, as batatas, os porcos.”) e Colombo “faliu”. Os dois brigam (“ Insisti, socorra-me seu louco, senão afundamos juntos e arrastaremos o sentimento que nos obriga a permanecer nesta terra maldita. (...) Dei-lhe tal soco que o prostrei ao solo.”) e Bulhões vai embora.
O narrador volta (corta) para Rubem que (por causa do amendoim) lembra da época de infância, quando ia à matinês do Cinema Pirajá para ver as fitas de uma heroína africana chamada Nayoka, por quem nutria uma paixão adolescente. Lembra da mãe e, com despeito, do pai e do dinheiro. Lembra de Pedro, seu amigo, que “dorme com todas as mulheres que já passaram pela minha cama.”
Na terceira parte, o barco atraca e Rubem pretende ajudar Colombo. Liga para Pedro (“temos que trazer um homem de volta à vida, fazia mistério”) que agora se encontra com os dois. Vão para um bar (com o dinheiro do pai de Rubem destinado à pensão) e começam a tomar chopes. Em um outro contraponto percebemos a análise de Pedro sobre o amigo e sobe a situação: (“Rubem é mesmo um frouxo. Comove-se com qualquer imbecil. E que faço aqui com este Colombo que vendia amendoim e era feliz?”). Ficamos sabendo como Pedro encara o amigo: “Ofende-me, mas eu o quero perto. Ele é o socorro que tenho. Estica as mãos quando caio bêbado na calçada. Não tem vergonha de mim, sacrifica seu melhor lenço para limpar-me a cara, a mesma cara que igualmente registra a sua aflição.” (...) “Eu lhe faço ver que as nossa cárie dentária estão entupidas de carne amiga” (...) “Ofereço-lhe dinheiro como se fosse uma puta, quero abastardá-lo.”(...) “Rubem é o imbecil que arrasto nas costas”
Neste momento há uma nova “quebra” de narrativa e ficamos sabendo que após a briga, Bulhões se registrou em um hotel chique se apresentando como filho de um Senador. Ali ficou alguns dias e conheceu uma mulher. Foi morar com ela, mas tem saudades de Colombo e fica doente (“...ele surpreendia a própria vida ali em pessoa a derramar-se sobre uma epiderme que não conseguia, no entanto, impedir as outras paixões humanas.”(...)”A mulher exigiu, ou voltas à vida, ou deixo-te solto, à deriva. Bulhões levantou-se, tomou banho, pediu-lhe oito horas de liberdade”).
Aproxima-se o fim do conto, quarta parte. Os três estão no bar, onde o dono, “avisou, em uma hora expulso todo mundo daqui. Havia que aproveitar os últimos sessenta minutos. Bebiam depressa quando Bulhões entrou distraído. Bulhões, gritou Colombo, em direção ao assassino de touros e colheitas. Bulhões disse, bem que a mulher me ensinou o caminho da amizade, deu-me liberdade na única noite em que poderia encontrá-los aqui. Rubem tomou-o como irmão e Colombo ofereceu-lhe perdão pelos animais dizimados. Mas, agora que já não temos razão para a discórdia, o que faremos com a nossa impiedosa felicidade, disse Pedro. Para Rubem, o mundo se simplificava. Meus amigos, enquanto o chope chegar-nos à garganta como um flor do campo, tomemo-lo com delicadeza.” Bebem todo o dinheiro.



I Love My Husband (1ª pessoa)
Neste conto, Nélida usa uma fina ironia para analisar as relações humanas, submetidas às convenções e imposições da sociedade. O eixo central é uma análise do papel da mulher no casamento e na sociedade machista. É de Nélida a criação, como ela mesma diz, da mulher ‘desatenta’, que aparenta um estado de desatenção como forma de subverter a dominação do homem em nossa sociedade.
Utilizando-se da técnica do fluxo de consciência, seguimos as reflexões de uma típica dona de casa de meia idade (“...evita falar do meu corpo, que se alargou com os anos...”), a desabafar suas angústias e expor seus traumas e carências. Ela inicia o conto com uma confissão que mostra bem o nível do relacionamento protocolar, onde o amor – se é que houve – deu espaço a uma relação fria: “Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspira exausto da noite sempre maldormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta
Os Amantes – Renee Magrite
três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga duas vezes por semana, especialmente no sábado.”
O conto é todo construído com metáforas: “...trazer de volta para a sala de visitas um pão sempre quentinho e farto” (...) “Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque viverás a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste ato, que serás jovem para sempre.” (...) “Estes meus atos de pássaro são bem indignos...” (...) “Ser mulher é perder-se no temo, foi a regra de minha mãe. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a condição feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo não é o envelhecimento da mulher, mas sim o seu mistério jamais revelado ao mundo.” (...)
Percebemos – por ela - que o homem “constrói” a vida dos dois, não dá valor ao que ela sente, ou pensa, despersonalizando-a e, inclusive, colocando-a fora de qualquer esforço material. Ela é vista por todos como “sombra” do homem (“A mim também me saúdam por alimentar um homem que sonha com casas grandes, senzalas e mocambos, e assim faz o país progredir. E é por isso que sou a sombra do homem que todos dizem eu amar.”).
No entanto a mulher olha os dedos e fica “ revoltada com as unhas longas pintadas de roxo. Unhas de tigre que reforçam a minha identidade, grunhiam quanto à verdade do meu sexo. Alisei meu corpo, e pensei, acaso sou mulher unicamente pelas garras longas e por revesti-las de ouro, prata, do ímpeto do sangue de um animal abatido no bosque?”
Ela quer discutir o amor, o “futuro” (“Falei da palavra futuro com cautela, não queria feri-lo, mas já não mais desistia de uma aventura africana recém-iniciada naquele momento.”), mas o marido não dá atenção, fica lendo o jornal.
Ela confessa que de vez em quando tem pensamentos que fogem ao padrão exigido pela sociedade a uma mulher bem casada. É um desabafo de quem gostaria de ser livre, mas tem medo das conseqüências que essa atitude pode trazer. É esse medo que a conduz de volta às ‘calçadas familiares’ (num duplo sentido: conhecidas e de família): “Ah, quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um rosto que não é o meu, mergulho numa exaltação dourada, caminho pelas ruas sem endereço, como se a partir de mim, e através do meu esforço, eu devesse conquistar outra pátria, nova língua, um corpo que sugasse a vida sem medo e sem pudor. E tudo me treme por dentro, olho os que passam com um apetite de que não me envergonharei mais tarde. Felizmente é uma sensação fugaz, logo busco o socorro das calçadas familiares, nelas a minha vida está estampada. As vitrines, os objetos, os seres amigos, tudo enfim orgulho da minha casa.
Esses meus atos de pássaro são bem indignos, feririam a honra do meu marido. Contrita, peço-lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe esquivar-me de tais tentações. Ele parece perdoar-me à distância, aplaude minha submissão ao cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar cada ano. Confesso que esta ânsia me envergonha, não sei como abrandá-la. Não a menciono senão para mim mesma. (...) Nunca mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele não suportaria o peso da confissão.”
Termina o desabafo dizendo: “Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda que sem vontade às vezes, ou me perturbe algum rosto estranho, que não é o dele, de um desconhecido sim, cuja imagem nunca mais quero rever (uma revelação da – ou das – traição/traições?). Sinto então a boca seca, seca por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que me alimentará amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que no declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo o meu marido.”


O Ilustre Menezes (1ª pessoa)
Osman Lins, da Academia Brasileira de Letras, convidou alguns amigos para ‘reescreverem’ o conto “Missa do Galo”, de Machado de Assis.
O projeto era o seguinte: como o conto fora narrado originalmente em primeira pessoa, a partir das recordações de um jovem estudante (‘flash-back’) a respeito de uma noite que passara na casa de um meio parente seu, onde quase ocorre uma cena de amor com a mulher deste; cada um dos escritores teria que enfocar o mesmo conto a partir da perspectiva de uma das outras personagens. Assim é que Julieta de Godoy Ladeira explora a perspectiva da “boa Conceição”; Nélida Piñon se ocupa de Menezes, cuja intimidade devassa e para quem inventa uma linguagem tão interessante quanto ele; Antonio Callado aproxima-se de uma personagem apenas sugerida por Machado, a mãe de Conceição, levando-nos finalmente a entrever, por um mágico jogo de espelhos, o perfil do grande escritor; Lygia Fagundes Telles, manipulando um estranho “eu” onisciente, procura invadir o mundo do conto, luta por modificá-lo e vê que tal tentativa é vã; Autran Dourado, valendo-se do escrevente, revela-nos, para surpresa de todos, uma Conceição que, à primeira vista, parece contrariar a de Machado, mas na qual acabamos por descobrir, ampliados, certos traços, tênues no original. Isso foi publicado em um livro chamado: Missa do Galo, variações sobre o mesmo tema., de 1977.
O que temos aqui é a participação de Nélida Piñon nesta obra. Em estilo ‘machadiano’ (a típica linguagem acadêmica de um senhor de meia idade que vemos em Dom Casmurro) Uma prosa elegante e sem adjetivos em excesso, traça um retrato das relações humanas e sociais no Rio de Janeiro a partir do enfoque de Menezes, o marido de Conceição, em 1862. Menezes se sente velho (tem cinqüenta anos) e confessa que teve várias amantes (“moçoilas”), mas que ainda se arruma com apuro para sair à rua, pois ainda é um galanteador: “Um homem é a sua aparência.”
Menezes diz que Conceição, sua atual esposa (já que é viúvo), apesar de bem mais nova que ele, ‘não tem graça’, não sabe sequer rir. D.Inácia, mãe dela, criou-a de forma austera, para que ela não demonstrasse um comportamento que pudesse ser interpretado como doidivanas. No entanto, Menezes diz que não é só no comportamento social que Conceição se mostrava desse modo e isso era muito ruim para o casamento: “...mal eu a tocava, Conceição retraía-se toda, a tremer de frio, depressa recolhendo para dentro do corpo qualquer gesto que pudesse eu interpretar como generoso.”(...) “Se culpado há, é D.Inácia. Tanto alimentou-lhe o recato que Conceição parece regá-lo diariamente, como se fosse ele o seu jardim.”
Em virtude disso, e de seu comportamento dissoluto, Menezes sai todas as quartas feiras e só retorna na manhã seguinte, momento em que D.Inácia o ‘fuzila’ com olhares de recriminação. Diz que o seu prêmio por ter que agüentar certas intromissões da sogra é a fidelidade de Conceição e sua completa devoção ao lar. Conceição é tão submissa que sequer se intromete para pedir satisfação sobre qualquer assunto, seja dinheiro, trabalho (Menezes é escrivão) ou essas ausências suspeitas. Para ela o papel da boa mulher não condiz com comportamentos que firam a harmonia do casal. Ela sequer mostra ciúmes pelos objetos ‘herdados’ do antigo casamento do marido com a falecida Amélia.
Essas saídas de Menezes têm um motivo: Pastora, um caso do nosso escrivão. A desculpa é sempre a mesma: o teatro. (Há inclusive uma citação ao próprio Machado de Assis: “- Pois fui prestigiar a um jovem talentoso. Seu nome, se não estou enganado, é Machado de Assis. Deu-nos ‘O Protocolo’, que estava bastante satisfatório. Contudo uma comédia muito mais para ser lida e não representada.”)
Pastora é completamente diferente de Conceição, mostra-se uma mulher que satisfaz os desejos sexuais do protagonista. Um dia, no entanto, quando Menezes e Conceição faziam cinco anos de casamento, em casa, às vistas da sogra e da esposa, ele rasgou o bilhete do teatro em uma cena que não surtiu o efeito desejado: o de ‘demonstrar’ o quanto sua mulher era mais importante que as suas saídas.
Na semana seguinte Menezes sofre as reprimendas de Pastora, mas tal é o seu furor que “...lancei-me às carícias que há muito não nos devotávamos. E tanto haviam estas carícias se distanciado de nós que, agora revividas, encantavam Pastora.”
Um dos parentes de sua esposa falecida, Nogueira, precisa de hospedagem, pois vai prestar o concurso para o ingresso nos “estudos avançados”. Mesmo sem ligações com a família de Amélia, Menezes o acolhe, pois vê nele a promessa de inclusão na corte (“...sabia-o capaz de honrar-nos com brilhante futuro na Corte.”)
Na noite de Natal, após a ceia, Menezes vai à casa de Pastora. No momento da saída, D. Inácia pergunta ao hóspede:
“- Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo este tempo?
- Vou dedicar-me à leitura, D. Inácia.”
E fica a ligação com o conto do “grande analista da alma humana”.

Finisterre (1ª pessoa)


Finisterre era o objetivo das primeiras peregrinações, há milênios: o "Fim da Terra", quando ela “ainda era plana”. Ali o Homem ia se confrontar com o Fim, com o seu fim, com a Morte, tão bem representados pelo pôr do Sol no imenso oceano sem horizonte. Ali também o Homem encontrava com o Renascimento, igualmente bem representado pelo nascer do Sol no dia seguinte. Finisterre assim representava (representa) não somente o fim de uma jornada, mas também o início de uma outra: a volta. O reinício, o recomeço, estando o Peregrino agora mudado. Os rituais não poderiam ser mais significativos: depois de ir até o fim da terra (onde há um farol), você desce até o mar onde devolve sua Concha até o Oceano, queima suas roupas de Peregrino/a, mergulha totalmente nu/nua (numa água gelada) e vê o Sol se pôr (ou morrer) no Mar. E então, retorna ao Mundo. Renascido.


Narrado em primeira pessoa por uma moça (mora na América – novo mundo) que viaja a uma “ilha” onde mora o padrinho, um homem de 70 anos. (“Abracei-o e disse, esta então é a Ilha prometida? Fez que sim com a cabeça. Há muito eu devia-lhe a visita, cruzar o mar, aproximar-me dos relevos da Ilha, juntos haveríamos de comer do mesmo pão”). O homem faz as apresentações da Ilha e a moça pede que ele fale sobre ela. Percebemos que ela quer fazer um resgate e que essa ida à tal Ilha pode ser uma simples metáfora de uma volta ao passado ou a ida a um local onde o padrinho mora. É bom lembrar que a própria Nélida tem uma história semelhante de retorno à Galiza, região natal de seus antepassados, que ela revisita neste conto.
“Pedi ao padrinho que me explicasse a mim mesma, eu queria provar-me como se fosse um vinho rascante. Sim, você crescia frondosa e não me levava o nome. Mas, em todas as solenidades estive perto. Acompanhei-te na primeira comunhão, nas formaturas, nas vigílias, te imaginei na penumbra fazendo-se mulher. Não tive filhos, talvez te nomeasse filha para privar com um sentimento que só intuí através de você. Você foi o segundo amor que tive, o primeiro destinei à minha mulher, que também amas, olha-nos ela agora à distância, ingênua e criança. Parece que não envelheceu.”
Eles comem comidas típicas da Ilha como mexilhões e caranguejos, vieiras e amêijoas. Até a carne de porco oferecida ela prova com reverência: “Com os olhos cerrados mastiguei a carne. (...) Ele apreciou que também eu tivesse recebido a educação que identificava os sumarentos detalhes cultivados por eles, a vida não podia ser frugal, seca, sem ilusões.”
Após o almoço, que durou duas horas e um descanso de meia hora eles saem passeando pela ilha, onde respiram a brisa ‘gallega’. Chegam até uma casa de dois andares e são recebidos por Maruxa (“Sejam bem-vindos, dizia Maruxa esmagando-me com afagos. O corpo pronto ressentindo-se com os sucessivos atos de apertar as mãos, beijar rostos, recuperar gestos ancestrais instauraram em nós na esperança de que os copiássemos.”). Sobem as escadas. Em um quarto está Amparo, a avó, de noventa anos. (“Ela tinha completado noventa anos na semana passada, com a família toda em torno, sem saber se lhe celebravam a festa, ou devotavam-se aos seus funerais.”). A avó abre os olhos quando fica sabendo da visita na narradora (“Olhe que ela atravessou o Atlântico especialmente para trazer-lhe o abraço de um país novo.”) e a família de seu padrinho fica em festa: “O retorno à vida por parte da velha obrigou a família a festejar em torno da cama.” (...) “Todos os brindes eram para a velha que recusara a morte em um dia de sol.” (...) “Por sua vez, dona Amparo esforçava-se em abrir os olhos, não queria morrer enquanto a fotografassem.”
A narradora ganha um pente de madrepérola de Amparo, é muito fotografada pelo padrinho. Ao sair do quarto, escuta da irmã do padrinho que:“...se fica alguns dias, dificilmente nos deixará....”, mas a narradora tem vínculos com o continente. Tomando café, conversa com o padrinho: “...quem de nós estará um dia vivo nos retratos que o senhor tirou? (...) Vi-lhe lágrimas nos olhos. Soube então que a visita estava terminada.”(...)
Vão todos para o cais: “O barco deixaria logo a Ilha. Vieram todos ao cais para as despedidas (...) Até breve padrinho. Hoje, ou amanhã, sempre nos veremos, disse ele comovido.(...) Somos de raça forte, não é, padrinho?(...) Me pareceu ter visto o padrinho chorar...(...) Adeus, gritei. Aquela Ilha era encantada, foi meu último pensamento depois que a distância nos separou para sempre.


Tarzan e Beijinho (1ª pessoa)
O conto, narrado em primeira pessoa (só não é possível saber se o narrador-personagem é um homem ou uma mulher) se passa no final dos anos 60 e início dos anos 70. É possível perceber isso quando uma das personagens pergunta ao narrador: “- O que se passa no Brasil, além de Pelé e Emerson?”
Tarzan e Beijinho são apelidos de um casal de brasileiros que o/a narrador/ora conheceu em Malibu “...antes de se transferirem para o Leblon, uma praia que havia tragado o coração de muitos almirantes batavos e sereias litorâneas. Viviam em Malibu como se ainda pisassem as areias de Cabo Frio. Para tanto recorrendo a símbolos nacionais, desde o azeite-de-dendê, a bandeira verde-amarela, até a flâmula rubro-negra.”
Tarzan e Beijinho voltam para o Rio de Janeiro em um navio (“O cargueiro holandês cuidou em trazê-los junto à coleção de conchas, búzios, cavalos-marinhos, o pingüim empalhado, toda a imensa concentração de salitre e mineral que Tarzan e Beijinho haviam recolhido do fundo do mar”) e se instalam no apartamento de Beijinho. Tarzan sai para fazer um reconhecimento sobre o Rio:”Horas depois, Tarzan trouxe novidades. Descobrira o país embriagado de cerveja, seus vapores em todas as esquinas. Era este então o retrato do Brasil que você esqueceu de desenhar lá em Malibu? Não é para menos que se urina tanto.”
No Brasil, tentam se integrar à sociedade a ponto de, inclusive, manterem intimidades com outras pessoas. Passeiam pela cidade com roupas excêntricas e saem com pessoas: “Beijinho colhia favores e amoras. Marcava encontros, trocava bilhetes, para o mesmo dia, hora e local. Assim não esquecerei. Tarzan cedeu-lhe mais lápis e papel. O lápis logo perdeu a ponta e Beijinho o arrebato. Pela manhã, em casa, tiramos as manchas da boca e do corpo com Bom-Bril e Odd sabor limão. E admitimos, antes Malibu fingindo estarmos em Cabo Frio.”
A narradora diz que “Precisava descobrir o mundo sem o socorro deles” (...) “ Sozinha, arrumei a mala, cingida ao essencial. Sem abandonar certo ritual que Tarzan e Beijinho não conseguiram extirpar de mim. E por que ficar. Afinal, não vivíamos em comunidade, nem dividíamos cama comum, como talvez suspeitassem os vizinhos por conta da nossa assiduidade.” e vai embora. Um pouco tempo depois e já sem roupa, a narradora diz que voltou para casa: “A chave quase não coube na fechadura pela ferrugem. O regresso parecia assinalado pela marca do abandono. Debaixo da porta, os bilhetes de Tarzan e Beijinho: por favor, por que a violência, quando há outros modos mais delicados de matar; não podemos mais viver sem você; já não somos Tarzan e Beijinho, somos você quando está perto; o que quer que sejamos, para lhe agradar?”
Os três acabam ficando juntos no final: “Saímos passeando pela praia, havia cheiro de sal e octanagem baixa. Tentei sorrir e eles me corrigiram. Quietos, de mãos dadas, agora parecíamos turistas descobrindo a cidade, a nós mesmos.

O Revólver da Paixão (1ª pessoa - monólogo)
Não é por acaso que o conto se chama “O Revólver da Paixão”, pois a narradora, em primeira pessoa, usa a técnica do monólogo ininterrupto que funciona como catarse (desabafo), escrito em forma de carta, como ela mesma explica em dois momentos (“Ah, amado, volte depressa, antes que outras cartas te persigam e fique a vida difícil para nós.” (...) “Amanhã te escreverei, de novo capítulo ante o meu amor.”).
Assim, ela expõe toda a paixão (no sentido de amor e sofrimento) a que está sujeita depois da finalização de seu relacionamento amoroso. “Como uma metralhadora”, dispara contra ele seu sofrimento e suas angústias, a sensação de abandono e os desejos sexuais. Percebemos no conto o grau de intimidade a que os dois chegaram e como a narradora se sente dependente desse contato que pode não mais acontecer. Como ela mesma diz, ela é uma “loba”, logo, uma devoradora.
É possível percebermos que a protagonista do conto está sofrendo muito com a separação. O relacionamento intenso que ela teve extrapolava os limites de um amor ‘convencional’ e caminhava para a possessividade e a doença. Este amor doentio misturava sexo e sentimentos e fez da protagonista alguém extremamente dependente do amado, como é possível perceber nos fragmentos:
“Não, não reclame, você me quer assim mesmo, ainda que selvagem eu te cause medo, ameace a tua liberdade. Ou me querias selvagem só na cama? E no espaço da vida me exigias atada por tuas próprias mãos? Mas, eu me rebelo. Ou serás só meu, ou te mato.”
Ou:
“Eu te mastigo, eu te como, eu te rasgo como você me rasga, me grita, me ama. Às vezes, penso que você me ama fraco, que o teu corpo é menos vigoroso que o meu. O meu se aprimora pelo próprio amor. É o amor que me faz vencer as madrugadas, te cobrar mais amor que já não queres dar, estás exausto, derrubado, fraco, senil.”
Ou ainda:
“Se não quiseres pensar muito, diga como da outra vez, tenho tuas palavras em fogo no meu coração: eu te amei com o fervor das grandes estações humanas, eu te amei com a contorção da morte, amei com o medo de perder-te, mas permita-me agora amar-te com o impulso da vida selvagem, desregrada, sem outro modelo que o do próprio amor.”
E ainda, este último:
“Sei, sim, que te assusto, insinuas que faço da cama o princípio e o fim da vida, e que o teu corpo é o evangelho sobre o qual se constroem as palavras habitadas por mim pela primeira vez. Se é assim, tome-me como sou. Transija com a minha volúpia. Aceite viver com uma mulher perdida no pecado de amar. Ah, hás de dizer, até você fala em pecado? Sim, falo, cometo, vivo, devoro e quero. O que você tem com isso? Pecado é a tua boca, o teu sexo, o teu peito, os teus pêlos, a testa franzida quando vais gritar de gozo. O que querias, que jamais tivesse enxergado o teu rosto quando me amas, só porque, perdida de amor, devia estar ocupada com o próprio prazer?”
O conto não tem uma ‘história’ no sentido convencional. Cabe ao leitor entender a ‘alma desta mulher’, que pode ser qualquer alma feminina ao sofrer intensamente com a perda do amado e de toda a gama de sensações (inclusive sexuais) que esse amor proporcionava. Esse erotismo e essa sensação se sofrimento (paixão) amoroso expresso por alguém abandonado e confuso com este abandono, pode ser lido/ouvido em outros exemplos do cancioneiro popular brasileiro, como “Tatuagem”, “Atrás da Porta”, Trocando em miúdos” (Chico Buarque); ou “Garoto Maroto”, “Meu vício é você” (Alcione)

Coração de Ouro (3ª pessoa)
Antenor Couto recebe uma polpuda herança: “...conformou-se com a sorte, que lhe veio acompanhada de ações, títulos, glebas na Barra da Tijuca e dois edifícios. O primeiro na Avenida São João, povoado de inferninhos e traficantes. O outro na Avenida Rio Branco, coração do Rio antigo, cujos inquilinos iam desde autônomos a liberais ansiosos em ingressarem na vasta rede financeira do país”. E faz questão de dar mostras a toda a sociedade sobre sua atual condição. O conto exagera nas marcas externas de riqueza: carros, móveis, bebidas...
Apesar de antigo, o edifício do Rio o enche de emoção pela nobreza que exibe. Mas ele também quer conhecer o outro, o de São Paulo, e para isso: manda uma secretária três dias antes à cidade para supervisionar a satisfação de seus desejos no hotel Sheraton (cuja reserva para a suíte presidencial tinha sido feita com quinze dias de antecedência); essa mesma secretária envia (de São Paulo para o Rio), um carro de luxo -“da antiga frota de Roberto Carlos”- para levá-lo ao aeroporto (do Rio); onde contratara um jato particular para transportá-lo (exige que ele e a tripulação sejam revistados no aeroporto do Galeão); durante o farto almoço servido na aeronave, deixa uma garrafa do vinho Mouton Rotchild quase intacta para mostrar riqueza; obriga o piloto a voar por mais 15 minutos sobre a capital paulista para se “ambientar” e finalmente chega ao hotel, onde “...a secretária mostrou-lhe as vantagens da altura, dali apreciariam a cidade como se voassem. A certeza de que o viam em harmonia com o poder, sem tornar-se voraz, lisonjeava AC. Havia agora em sua vida uma nova escala musical a que obedecia.”
Antenor Couto e a linda secretária (“...ar de princesa, dedos finos, delicado cerrar de pestanas...” que havia sido indicada em cartão da joalheria Tiffany’s) tomam champanha e vão para a cama. No dia seguinte ele começa a ficar ‘escravo’ da agenda que o acompanhará pelo resto da vida, como um “coração ‘de ouro’”, como diz o título. Acompanhe esse ‘surgimento’: “Ao despertarem na mesma cama, as roupas dispersas no chão, ela folheou voraz a lista telefônica. Mas, como o brusco movimento destacava-lhe a beleza que a noite havia escondido, Antenor Couto ordenou champanha a pretexto do café da manhã. Sorveram quantidade que os levasse de novo ao leito, e, pela madrugada, tomando da agenda contra os seios ligeiramente dourados, ela disse:
- Já perdemos o primeiro dia.”
Ficam mais três, até que Antenor Couto se resolve ir ver o prédio, um pardieiro que o envergonha: “ No quarto dia, no prédio da São João, AC envergonhou-se de uma propriedade que, além das marafonas, rufiões e traficantes, há muito não dedetizavam, as baratas seguiam pelo elevador com preguiça de usarem as escadas. Salvou-o da humilhação haver deixado a secretária no hotel.”
Dois dias antes de regressar para o Rio, recebeu em telegrama urgente que passou à secretária com a frase: “nunca deixam em paz o homem de fortuna.” A secretária arrumou as malas e eles voltaram para a Cidade Maravilhosa. Ele, preocupado com sua fortuna; ela... “...apertava a agenda com ardor, que não fosse ao chão. Logo a agenda onde se instalara o coração de Antenor Couto (...). Decidira cuidar do coração de papel sem lhe permitir espaço em branco. Tecia-lhe uma vida que se ia transferindo sempre para a próxima semana.” (...) “Jamais abandonaria a agenda, que era o coração dos dois. Ou esqueceria de providenciar telegramas redigidos pessoalmente com o propósito de inquietá-lo e trazê-lo de volta a casa, de onde novamente planejariam a próxima semana.”



O Sorvete É um Palácio (1ª pessoa)
Nota-se no conto que a narradora é uma senhora passando da meia-idade que viu um homem (vendedor de sorvete, casado,“três filhos na escola pública, a mulher a acuá-lo de haver escolhido uma vida sem esperança”) pela manhã na praia e se sentiu atraída por ele. Em um monólogo interior (fluxo de consciência) que mistura presente com passado, deixa entrever sua idade: “Na praia, provei do sal e da alegria. Esquecida do espelho a proclamar que a carne não é mais um sortilégio para as mulheres de minha idade. Mas, por que deveria eu assustar-me com o tempo, este calendário desprezível. Que compromisso tenho com ele?”, e a vontade de viver um amor: “Não, meu coração é teimoso, jamais deixou de apurar-se só porque faltou o afeto.”
É possível notar que a narradora é uma solteirona (“Aos domingos, treinava o discurso destinado ao pretendente que chegasse primeiro. E me dizia, nunca se sabe o que a vida vai exigir de nós, a qualquer momento me pedem a sua mão e junto seguirá o seu destino.
Só depois de muitos aniversários percebeu que ainda não se havia marcado data para ele levar-me ao altar. Com a dignidade ferida pela longa espera, passou a dizer às visitas que não tinham motivos para ficar, a menos que quisessem muito. Já não escovava o terno escuro com o ímpeto de antes e engordou”) e o homem pede dinheiro para montar uma indústria, convidando-a para sócia. Segundo a narradora, este homem é pobre e não agüenta as pressões e exigências da mulher, que o acusa pela desgraça e pelo sofrimento. Em virtude disso ele “foge” para Copacabana e se vê livre das cobranças familiares. O homem confessa que os dois já não tem mais vida íntima.
Ficamos sabendo que a narradora é assídua fã de novelas, pois, segundo ela, prefere viver a vida do outro do que a própria. Ela o convida a ir para casa (espaço sagrado, onde só alguns podem entrar), onde ele se instala na poltrona que havia sido do pai da narradora e começa a falar-lhe de sorvetes: “Servia-se da baunilha, do chocolate, de rubro morango como areia molhada a deslizar pelos dedos.”
A narradora vê, na imagem do sorveteiro alguém de uma sensibilidade feminina, algo tocante para ela em um homem, o que aguça a sua paixão: “Nervoso, ele andava pela sala. Talvez me quisesse amar ali mesmo. Parecia um perdigueiro cujo coração tinha as batidas do trote. Também eu me inquietava. De que modo agiria um homem acostumado a criar um mundo apenas com água, açúcar, leite, frutas, essências raras? Este homem era a hora da madrugada quando meu peito sobressaltado compreendia o alvorecer. Seus atos tão claros que eu o vazava com uma lança, da sua carne não sairiam o vinagre e o sal que ferem. Quase gritei, mate-me a sede com o sorvete das suas mãos de fada.”
O homem começa a falar da esposa, dos filhos e de sua condição familiar infeliz. Confessa-se um apaixonado por futebol e diz que está tarde e precisa ir embora (pegar o trem). A narradora lhe oferece dinheiro para um táxi e a chave (que era do pai) da casa; assim ele poderá voltar amanhã. No entanto, ele se vai e ela pensa: “Nada, porém, impediria que viesse de novo a mim, me tomasse nos braços, me lambesse devagar até o desfalecimento. Ainda que tenha esquecido a chave sobre o aparador da sala e precise apertar a campainha da porta. Eu o ouvirei a qualquer hora. Quase nunca saio.”

Disse um Campônio à Sua Amada (1ª pessoa)
O conto, narrado em 1ª pessoa por um homem apaixonado que foi deixado pela amada começa com uma frase de efeito que bem demonstra o estado emocional do narrador, além de fazer referência a uma música da década de 60, de onde saiu o título: “Se o dinheiro não bastar, eu aposto o coração. É uma moeda que também tem preço. Arranco do peito e fresco ainda jogo ele sobre a mesa para juntos ouvirmos as batidas de um órgão que me fez te amar desde a manhã até o anoitecer, para ao teu lado comover-me com as lágrimas que hás de derramar, sem dúvida, pelo meu sacrifício.”
Ficamos sabendo por meio de seu ‘desabafo’ para ela, que a paixão o consome desde o primeiro momento que ele a conheceu e que ele não suporta ficar separado dela. Este amor é mais forte do que ele e ele é completamente dependente dela. Mais um conto de amor destrutivo e possessivo. O “conto” seria então como uma “carta” de um náufrago dentro de uma garrafa (ao mesmo tempo de bebida e como meio para enviar-lhe a mensagem) a ser lançada no “mar”. Esta cena começa a ser delineada quando ele se identifica com a terra (por isso a associação com a figura do camponês); ao mesmo tempo que atribui à amada, características da água.
A partir daí, o discurso do narrador se torna reforço desta metáfora algumas vezes: “O passeio pelo teu corpo tornou-se o caminho da terra. Mal me refazia dos precipícios, e lá esbarrava contra os seios. Pequenos, sólidos, neles minhas mãos pousaram a primeira vez por muito tempo. Lembra-se?” Ou “E você gargalha para o mar, porção generosa do teu signo. Por natureza, você é amiga das águas, enquanto alio-me à terra. E sempre que ingênuo penso-te em terra firme, qual o quê, envias bilhete rabiscado sobre a líquida superfície de tua baía amada, e que jamais recebo.” Ou ainda: “Apesar de líquida, e nadar exaustivamente nos fins de semana, você anseia pelas coisas firmes, quer sejam pedras, casa, tijolo, ou o olhar direto que surpreendes em mim.”
Ficamos sabendo que o narrador escreveu a carta para a amada expondo-lhe todos os medos e inseguranças. Deixou a carta na casa de uma amiga comum: Ana, mas pegou a carta de volta. “...consenti que a garrafa ficasse no apartamento, para testemunhar esta carta.”
“Não sei onde você está agora, daí te propor o coração. Você diz que volta, acho porém que está a nadar em qualquer enseada, com veleiro à distância. Ah, sempre me faltou carta marítima com que medir os anseios das tuas correntes atlânticas (...). “Amanhã é sexta-feira, talvez regresses para tomar meu coração. Como das outras vezes. Só que a cada volta tua, e sempre que te oferto o coração, sinto que te tenho como se te perdesse.”
E a carta termina com a frase: “Do teu camponês que se despede sem saber que é para sempre.”

A Sereia Ulisses (1ª pessoa)
Uma mulher (que viremos a saber no final do conto, intitula-se PN), conta que nunca se conformou ao estereótipo de mulher submissa imposto pela sociedade machista. Seu comportamento sempre foi mais dominador e mais agressivo, pois ela conhecia as fraquezas do universo masculino:“Eu queria a luta, sobretudo afiar as unhas na pele humana tão sensível às farpas. Sempre julguei necessárias as pequenas maldades.”
Para ela, os homens eram vaidosos e arrogantes, e ela sabia como ‘dobrar’ essas características, humilhando e destruindo aqueles que se relacionavam com ela. Seus relacionamentos não tinham duração, pois ela não tinha desejo de se ligar a ninguém. Mais uma vez a temática da selvagem, da devoradora de homens e paixões, da arrebatadora:
“Acaso não havia visto o pavão de porcelana que me decorava a cômoda e que, igual ao homem, uma espécie sem dúvida contraditória, só atingia o esplendor ao arrastar às costas as cores do arco-íris?”
Ou
“Eu sabia da arrogância masculina. Assim, desde menina, deixei os homens à munha espera, para que perdessem o brilho da vaidade. E a inquietação pelo meu atraso os deslocasse dos seus sólidos eixos”
“Fugia dos amantes rabiscando a parede com batom: morreu a tia, sou agora rica e independente. Bastava escrever estes avisos, para meu nome surgir no testamento de um parente recentemente falecido.”
A narradora sequer suportou rotina de um casamento, ateando fogo ao apartamento como forma de desvencilhar-se do marido, a quem depois telefona agradecendo o dinheiro da pensão. É possível perceber que este homem se chama Antônio e que acaba ficando com Sílvia, que inclusive a ajudam a procurar o grande amos de sua vida:
“Confesso que sou vulnerável e cheia de labaredas. Pronta a enfrentar o inimigo com lança e elmo. Mas, foi com astúcia que expulsei o marido da cobertura de Ipanema. Bem que ele não queria sair. Havia avisado, não adianta agir no escuro, ou sob a proteção da vela, ninguém é homem para me expulsar daqui. (...) Deixei que saísse vencedor. Durante uma semana jejuei, queria ele repousado sobre a minha fraqueza. Trazia-me frutas obedientes à tática de que ao inimigo também se alimenta. E, porque eu mal reagia aos seus cuidados, ele adormeceu. Em verdade, dormia como um anjo quando botei fogo no colchão, na cortina, antes tendo o cuidado de avisar aos bombeiros.
O marido venceu as chamas de cueca. Pessoalmente abri-lhe a porta do elevador para que ele se salvasse. No pátio, os vizinhos suavizavam-lhe os danos com a certeza de que saberia reconstituir o futuro. Mas, quando o olhei firme, para ele não se perder na piedade humana, e soube quem havia ateado fogo à cas, não quis acreditar. Apelou para amigos comuns. Não é possível que ela chegue a tais extremos. (...) O advogado aconselhou-o a não dar queixas. Seria incômodo explicar que a mulher, para livrar-se do marido, incendiara o apartamento. Melhor largar os bens com ela e aceitar a versão do acidente e a apólice da companhia de seguros.”
“O amor para mim nunca ultrapassou uma estação. Eu resplandecia no verão, as narinas mergulhadas na maresia, tudo me impulsionando a viajar.”
Em um baile à fantasia na casa de uma amiga (Iolanda), vai fantasiada de Dom Pedro I e conhece um homem a quem dá o nome de Pedro Alcântara (por causa da fantasia?) Miggioro. Um homem vindo se São Paulo, com quem vive um (o primeiro!) grande amor. Este relacionamento, ao contrário dos outros, dura um ano e é terminado por ele, que parte para a Europa. Ela não agüenta a saudade e a separação e vai procurá-lo com o auxílio de Antônio e Sílvia:
“Ventava quando completamos um ano de amor e pensei, sinal de mudança, nenhuma folha velha vai agarrar-se às árvores. Ele veio. Próximos à janela, agarrávamo-nos com temor. O rádio transistor anunciava a falta de energia devia-se a estragos na estação central. Acho que está na hora da despedida, disse-me em prantos. Chorando também, recusei, juntos enfrentaremos o destino. Não se deixou convencer. Sigo amanhã para a Europa, sinto-me já no exílio, um rei destronado.”
Miggioro diz que só se é possível amar quando se está longe, pois quando se está junto, não é possível sentir plenamente o amor, o único da vida da narradora que termina o conto lembrando de uma ‘garrafa’ que fora lançada em um rio atrás da casa, lançada por um naufrago da vida (amor).
“Tocando-me os dedos com zelo, assegurou-me um felicidade intraduzível em palavras: saberei de Paris quando estiver em Roma: não há outro modo de descobrir onde se esteve senão afastando-se do objeto dos nossos sonhos: é assim que, nesse instante, estou vivendo o nosso amor, agora que tudo está terminado.”
Ela termina o conto escrevendo ‘aos leitores’: “renovando o pedido de socorro e conclamando erte insano bem-querer à existência: a vocês, meus leitores de sempre, da sua amiga: PN
Ah, naquele tempo eu estava viva.”

O Calor das Coisas (3ª pessoa)
Conto de final aberto com narrador-observador, pode ser situado na linha do realismo fantástico. Realismo fantástico é uma linha da literatura que enfoca os absurdos. Teve um grande desenvolvimento nos países que passaram por processos ditatoriais e/ou por momentos de opressão da liberdade. Como esta era tolhida, os escritores viram nas artes uma maneira de se expressarem. São célebres os autores: Fraz Kafka, Gabriel Garcia Márquez, José J. Veiga, Érico Veríssimo na segunda parte de Incidente em Antares.
É a história de Oscar, que desde menino passou a engordar muito, ganhando o apelido de ‘pastel’ dos meninos da vizinhança. Seu corpo foi tomando, pouco a pouco formato de pastel e ele chegou a ‘esquecer’ seu próprio nome. Chegava a engordar quatro quilos em menos de dezesseis horas. Para seu desespero, até a mãe – que o amava e protegia – passou a chamar-lhe assim. Os excertos abaixo mostram ao leitor a triste situação do protagonista: “ Os vizinhos o chamavam de pastel. E a mãe, enternecida, repetia, meu pastel amado. A alcunha devendo-se à gordura que Oscar jamais combateu, mesmo através de rigorosos regimes. Certa vez viveu de água por cinco dias, sem o corpo reagira ao sacrifício. Após o quê aceitou a explosão do apetite e esqueceu o próprio nome.” (...) “Insurgia-se constantemente contra um destino que lhe impusera um corpo em flagrante contraste com a alma delicada e magra.” (...) “Apesar da sua visível mágoa pelos pastéis, comia dezenas deles por dia. E não os podendo encontrar a cada esquina, abastecia a sacola com óleo de soja, frigideira, pastéis por fritar, e discreta chama que o fervor de seu hálito alimentava. Nos terrenos baldios, antes fritá-los, afugentava os estranhos que lhe queriam roubar a ração.”
Qualquer diversão para ele era um tormento. Ir ao cinema, por exemplo. Era preciso que sua mãe subornasse algum dos amigos dele com dinheiro, o que acabou se tornando desnecessário quando ele mesmo parou de ir, pois não tinha onde sentar e desistiu de ver os filmes em pé. Desesperado, Oscar chorava muitas vezes e a mãe fingia não ver as lágrimas, para não constranger mais o filho. A mãe protege o filho, mas suas palavras são um tormento para o glutão, como pode ser comprovado por este trecho que termina com uma metáfora gastronômica do amor que a mãe nutre pelo filho: “A expressão deste afeto, que seu disforme corpo não podia inspirar, arrastava Oscar para o quarto, amargurado pela erosão das palavras maternas, que só pretendiam atraí-lo para dentro da frigideira abrasada de zelo, paciência e fome.”
Oscar se torna adolescente e começa a imaginar o amor, sensação que lhe faz muito mal, dada a impossibilidade de ser amado: “Depois do banho, já perfumado, imaginava como seria o amor entre criaturas, os corpos na cama libertos do desgoverno de uma gordura inimiga. Nestes instantes, iludido com algum modesto saldo, chegava a se ver batalhando os adversários. Bastava porém um gesto brusco, para a realidade falar-lhe de uma obesidade em que não havia lugar para a poesia e o amor.”
Aos trinta anos, cansado, resolve comer quem o chamar de pastel. Instala sua poltrona na cozinha e polvilhou seu corpo com farinha de trigo (como um pastel). Quando recebe visitas, obriga as pessoas a passarem a mão por sua pele. A mãe reclama e ele quase tritura-lhe os braços...elegera a mãe sua primeira vítima. Para tê-la mais perto passou a fingir-se de cego, até que a mãe acostumasse e passasse a se vestir com roupas mais leves. Um dia ele abre os olhos e ela está à sua frente. Ela percebe nele o jeito de algoz. É a primeira vez que o vê como homem. Ele aproxima a sua poltrona da poltrona da mãe, que também tinha trazido a sua para a cozinha, recolhe alguns fios de cabelo e passa a vigiá-la, com o consentimento dela.

A Sombra da Caça (1ª pessoa)
Um lindo conto, escrito em linguagem poética e cheio de metáforas (“...eu te amei sem sonhar que o nosso amor um dia acabasse, e pude ouvir-lhe o pulsar delicado do coração, como se o tivesse amarrado aos dentes.” ou “ Não somos raça andarilha, Alguma vez pastor, sim, mas logo que os animais queriam o prado, nós os forçávamos ao repouso.”), versando sobre o tema da impossibilidade do amor e da felicidade entre duas pessoas.
A estrutura também chama a atenção do leitor, pois o conto é escrito como se fosse uma carta da mãe (já velha e perto da morte) ao filho mais novo de um casal que se desfez há muito tempo; e um bilhete rápido deste (que já é homem feito e não mora longe da mãe), em resposta, como se pode ver no último parágrafo.
No primeiro momento, a mãe explica ao filho que não amava o pai em uma longa carta. Diz que eles eram muito pobres (“...Conservo, como lembrança, bem dentro do lenço que arrasto para dentro do coração, o dia do teu nascimento, aquele instante de renovação e dor, quando se acentuou a nossa pobreza, as paredes a descascarem-se.”) e que ele fora o último filho (“Você, meu filho, fora o último de nosso sangue a nos bater à porta. Mal podia compreender a desavença que eu propunha ao pai.”).
Além disso, diz que eles não eram aventureiros, mas tentavam estruturar uma vida sólida, mais por empenho dela do que do pai: “ Não somos raça andarilha, Alguma vez pastor, sim, mas logo que os animais queriam o prado, nós os forçávamos ao repouso. Até que nos estabelecemos debaixo das árvores e aqui estou, tudo leva meu nome, pois agora minha memória é o esquecimento.”
Diz também que tentou fazer com que o pai amasse o filho (“...vivesse comigo a mesma aventura.”) com a mesma intensidade que ela o amava, mas que o pai era um homem mais prático. Segundo ela, ele era feliz, vivia o presente sem se preocupar muito com a vida (“...Ele saberia ser feliz sem mim. Uma salvação solitária e eu não o perdoava. Teve sempre condições de armar fogueira sem fósforo, vinha-lhe pelo assovio o pássaro em linha reta, desistindo do vôo. E fazia-se amar sem maiores empenhos.”); enquanto era sofria com esse tipo de comportamento, a ponto de querer destruir isso no homem que estava a seu lado: “Não tem vergonha de ser feliz, quando eu não sou? disse-lhe desconsolada. Passou a mão pelo meu cabelo, foi o único tesouro de minha família, ele explicou, não fiz outra coisa que te oferecer a chave desta mesma felicidade.(Chave a que ela se refere depois como ‘enferrujada de tanto salitre’)
Nunca me pareceu ele tão bonito. Eu me via feia, corrompia-me o sal que tragava puro sem auxílio de água. Não adiantam o perfume, o batom, carmesim de feira, ou você transportando fios de seda com que me amarrem os pés, disse-lhe, para ele desistir de palavras gratas, com destino de arruinar-me.”
A mãe não consegue ser feliz, é o oposto do homem. Esse tipo de comportamento destrutivo a alimenta, mesmo ela sabendo que acaba com o relacionamento: “...Olhamo-nos longamente, não podia ele compreender que eu precisava derrubá-lo para manter a integridade do lar.
Não nos deixe, eu lhe pedi, esta é a única chave da felicidade para mim. Pediu-me explicações, que felicidade é esta que corrompe metais, sem antes deixá-los fulgurantes?(...) Não adianta, mulher, eu já parti há muito tempo, mas você não percebeu.”
A narradora confessa que preparou uma ‘farta merenda’ para que ele fosse para longe da ‘cidade que os uniu’. Na saída, nem um sorriso que pudesse denotar algum carinho e que desse ao homem a certeza de ter para onde voltar e com que contar se ficasse doente. No entanto, ela se alimenta desse sofrimento. Enquanto se posicionava de forma fria, diz – na carta ao filho - que nunca amara tanto o pai como no momento que o perdera. “Não posso explicar por que fui seduzida pela dor. Eu estava carente de sofrer, mais que de amar. O amor me comprometia e exilava-me do mundo. E eu almejava a porção contaminada pelo veneno da terra.” (...) “Se me tivesse agarrado às suas pernas, arrancado os seus cabelos, proclamando aceito a tua chave enferrujada de tanto salitre, convívio humano, o abuso do teu sorriso, mas seja meu, fique no ninho de cacto, conchas e andorinha, ele teria ficado comigo.”(...) “Olho o carteiro todos os dias, ele me saúda pressentindo que seu gesto me ampara a viver.”
Para terminar ela ainda descreve ( de forma surreal, comparando o marido a um peixe cujas escamas a machucavam ) como era terrível fazer amor com o pai, e se envergonha de escrever essas palavras para o filho. Diz que ama o filho com “...um querer pálido próximo ao querer que me ilumina em torno ao retrato de teu pai. O homem me deixou, mas eu o derrotei também. Te abençôo, começou a chover.”
Aqui começa a segunda parte, resposta do filho em um bilhete de um só parágrafo, o último do texto. Não há nenhuma marcação da troca de personagem, recurso de prosa experimental modernista usada por Nélida, o que exige atenção do leitor. Achei melhor reproduzir todo o parágrafo para que você tenha idéia do estilo da autora. Perceba no texto a referência ao momento em que a mãe disse que ‘logo que os animais queriam o prado, nós os forçávamos ao repouso’, uma provável metáfora aos sonhos, desejos, filhos...
“ Um bilhete rápido, mãe. O pai também te amou. Com a decisão de te matar, embora o mesmo amor o fizesse atar pelas manhãs as patas que te encharcariam de veneno. E te ia salvando no sorriso, no regalo de folhas secas e chá escaldando. Só quando ele morria quis revelar-me o segredo que o unia a você, desde o nascimento, assegurou-me ele. Você era a sombra e o sol. E porque não volta, pedia-lhe para levar em conta a solidão em que tu vivias, talvez sonhando com ele entrando porta adentro. Disse apenas, há muito soltamos os animais no pasto, não resta um único sonho que colher como magnólia. Toquei-lhe a mão e falei: pai, a quem saio para também abandonar as casas que me abrigam por algumas horas? Ele disse: a mãe e eu deixamos instruções aos herdeiros para que se encaminhassem até a morte com orgulho e o dente altivo do javali. Foi o que ele fez, mãe. Morreu como se estivesse mais bem nascendo. O que talvez te sirva de aviso que também começaste a morrer. Fez-me ele crer, isto sim, que te amou enquanto restava a vida. Agora não sei se ainda te ama, onde quer que esteja. Se está vivo na morte, ou desperto pela força do teu coração saudoso. Do filho que te quer.”


O Cobrador (Rubem Fonseca)

Modernismo:
No Brasil o Modernismo tem três fases, também chamadas de gerações.
• A Primeira tem início com a Semana de Arte Moderna, em 1922 e termina em 1930. Entre suas características estão a iconoclastia, a liberdade de criação, a reverência e a rebeldia
• A Segunda (de 1930 a 1945) é mais social, mais participativa e mais engajada.
• Já a Terceira, também chamada de pós-moderna, ou pós-45, é mais introspectiva e eclética, isto é, tem várias tendências. Uma delas é a do romance e do conto policial, onde está inserido o autor.
Pós-Modernismo:
A Pós-Modernidade pode ser dividida em várias fases, de acordo com as influências históricas, ou de acordo com as tendências dos autores.
Rubem Fonseca está inserido na literatura das décadas de 70 e 80, momento em que os autores (pós-modernos, como Dalton Trevisan e Caio Fernando Abreu) apresentam características ligadas à excessiva urbanização, solidão e fragmentação das relações pessoais.
Em virtude disso a frase curta e direta, a violência gratuita, a solidão das grandes cidades, o sexo, as perversões e o palavrão são comuns em seus contos e romances.

Rubem Fonseca:

Nascido em Juiz de Fora, MG no dia 11 de maio de 1925, Rubem é formado em Direito, tendo sido comissário de polícia no Rio de Janeiro. Muitos dos fatos vividos naquela época e dos seus companheiros de trabalho estão imortalizados em seus livros.
Foi, na maior parte do tempo em que trabalhou, até ser exonerado em 1958, um policial de gabinete. Escolhido, com mais nove policiais cariocas, para se aperfeiçoar nos Estados Unidos, entre 1953 e 1954, aproveitou a oportunidade para estudar administração de empresas.
Após sair da polícia, trabalhou na Light até se dedicar integralmente à literatura. É viúvo e tem três filhos.


Obra:

• Os prisioneiros (contos, 1963),
• A coleira do cão (contos, 1965)
• Lúcia McCartney (contos, 1967)
• O caso Morel (romance, 1973)
• Feliz Ano Novo (contos, 1975)
• O Cobrador (contos, 1979)
• A Grande Arte (romance, 1983)
• Bufo & Spallanzani (romance, 1986)
• Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (romance, 1988)
• Agosto (romance, 1990)
• Romance negro e outras histórias (contos, 1992)
• O selvagem da ópera (romance, 1994)
• O selvagem da ópera (romance, 1994)
• O Buraco na parede (contos, 1995)
• Histórias de Amor (contos, 1997)
• Do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (novela, 1997)
• Confraria dos Espadas (contos, 1998)
• O doente Molière (novela, 2000)
• Secreções, excreções e desatinos (contos, 2001)
• Pequenas criaturas (contos, 2002)
• Diário de um Fescenino (contos, 2003)

Influências:
Sua influência pode ser encontrada tanto na sua experiência como policial, passando pelas páginas policiais e nos grandes “clássicos” do cinema, uma de suas paixões, de quem herdou a linguagem “cinematográfica” e ágil.
Rubem Fonseca é incapaz de pensar um livro em termos de idéias e palavras. “Tudo o que escrevo, aparece primeiro sob forma de imagens. Eu escrevo com a ação, os movimentos dos personagens e a disposição dos objetos em cena. Só depois é que penso no que eles vão dizer”. Uma mesma atitude pode ser esperada de seus heróis - seja ele um detetive, como o “Mandrake”, ou um escritor, como o narrador/personagem do conto “Pierrô da Caverna” : é paródico, inteligente, culto, cosmopolita, cético, irreverente, pernóstico e, acima de tudo, garanhão. As mulheres caem aos seus pés. Algumas morrem antes de ser seduzidas por ele. A exemplo de Hitchcock, Rubem Fonseca adora se repetir. É um narrador extrovertido, episódico; domina bem o diálogo (às vezes seus contos - muito bem conformados em seu espaço - são peças em um ato). Não resolve as situações com os costumeiros recursos. Da morbidez de um Kafka à sátira de um Thurber, seu mundo se identifica não bem por influência literária, mas por aquela aproximação que une os artistas e faz de sua sensibilidade o historiador da condição humana.
Destaque-se que uma de suas grandes qualidades reside exatamente em manter um certo halo de mistério, o que o aproxima de um tipo de literatura fantástica, encabeçada por Poe, e o afasta - em sendo um narrador episódico - daqueles narradores que são mais repórteres do que criadores.

O Cobrador:
Publicado em 1979, o livro é composto de 10 contos na seguinte ordem:
• Livro de Ocorrências (dividido em 3 partes) - 1ª pessoa
• Pierrô da Caverna - 1ª pessoa
• O Cobrador - 1ª pessoa
• A Caminho de Assunção - 1ª pessoa (Hist.)
• Encontro no Amazonas - 1ª pessoa
• Mandrake - 1ª pessoa
• Onze de Maio - 1ª pessoa
• Almoço na serra no domingo de carnaval - 1ª pessoa
• H.M.S. Cormorant em Paranaguá - 1ª pessoa (Hist.)
• O Jogo do Morto – único em 3ª pessoa

Análise dos Contos:
Livro de Ocorrências (dividido em 3 partes) - 1ª pessoa
• Primeira Parte:
Narrado por um delegado.
Um investigador (Miro) traz à delegacia uma mulher que havia sido espancada pelo marido: “dois dentes partidos na frente, os lábios feridos, o rosto inchado.”.
Ela quer tirar a queixa: “Na hora eu fiquei com raiva, mas já passou. Posso ir embora?”, mas o delegado não permite e vai atrás do marido (Ubiratan).
Ubiratan é enorme (“Um homem alto e musculoso abriu a porta.”) e oferece resistência, pois o delegado é mais baixo (“um metro e setenta”). Com a maior tranqüilidade, após tentar – educadamente – convencer o agressor a acompanhá-lo e ser agredido. O delegado dá um tiro na perna do agressor.
• Segunda Parte:
Narrado por um delegado.
Um menino de dez anos é atropelado por um ônibus em uma “manhã quente de dezembro”.
A cena é trágica: “As rodas do veículo passaram sobre a sua cabeça deixando um rastro de massa encefálica de alguns metros. Ao lado do corpo uma bicicleta nova, sem um arranhão.”
É feriado. “Ainda bem que hoje é feriado, disse um guarda, desviando o trânsito, já imaginou isso num dia comum?”
Uma mulher chega aos gritos e levanta o corpo do chão. O Delegado ordena que ela largue o corpo e torce-lhe o braço para que ela obedeça: “não parecia sentir dor, gemia alto, sem ceder. Eu e os guardas lutamos com ela até conseguir tirar o morto de seus braços e colocá-lo no chão, onde ele devia ficar, aguardando a perícia.”
• Terceira Parte:
Narrado por um policial/delegado.
Um homem comete suicídio (enforcamento) no banheiro de casa.“Na sala uma mulher com os olhos vermelhos me olhou em silêncio. Ao seu lado um menino magro, meio encolhido, de boca aberta, respirando com dificuldade.”
Quando o perito (Azevedo) pede ajuda para tirar o corpo, o narrador segura pela barriga e, ao erguer, o cadáver solta um gemido. Os dois riem “sem prazer”.
Após isso, “Azevedo urinou no vaso sanitário. Depois lavou as mãos na pia e enxugou-as na fralda de sua camisa”.

Pierrô da Caverna - 1ª pessoa
Inspirado em Lolita de Nabokov.
O narrador é um escritor de 50 anos, calvo e grisalho, que fala com um gravador, por isso os diálogos ganham agilidade e às vezes não têm nexo.
Era casado com Maria Augusta, que está com Fernando (gordo) Tem uma amante casada: Regina, mas se relaciona com uma vizinha de 12 anos (Sofia, a da pulserinha de ouro no tornozelo e ar blasée): “...ela tinha apenas doze anos, seu hálito ardente entrou pelas minhas narinas e extasiado vi o seu corpo se revelar, os pequenos seios redondos, a barriga enxuta por onde um fino fio de cabelos negros descia, até encontrar o púbis espesso de escuros pelos que me engolfou como um poço, um abismo noturno de gozo e volúpia. Depois Sofia perguntou se o sangue no lençol era dela.”
O narrador também transa com a mãe dela, Eunice.
O pai (Milcíades - gordo) descobre. Bêbado, espera a filha e o narrador no hall do edifício, ameaça o narrador com um revólver, mas acaba indo para a casa deste. Bebe mais e apaga.
Sofia está grávida e é levada a uma onde um médico asqueroso (Boris – gordo) aceita fazer um aborto. Tudo volta ao início: “O telefone toca várias vezes. Nada mudou, nada vai mudar.”
Durante todo o conto há referências a briga de galos, estudos de anatomia e incesto, além de citações de escritores.

O Cobrador - 1ª pessoa
Um cara se intitula “o cobrador” e passa a matar pessoas sem razão. “Odeio dentistas, comerciantes, advogados, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito.” Entre um e outro ataque ele reflete sobre sua vida.
1° ataque: Dentista, com um tiro na perna.
2° ataque: Um cara rico em um Mercedes, tiro no pescoço.
3° ataque: Matou o muambeiro que havia vendido a própria arma, uma Magnum.
1ª Transa: com uma coroa que o encontrou na rua.
4° ataque: Seqüestra um casal que sai de uma festa, dá um tiro na barriga e outro na cabeça da mulher; obriga o homem a se ajoelhar e decepa sua cabeça a golpes de facão.
5° ataque: Entra em um prédio e estupra uma mulher de 25 anos, no único apartamento que abriu a porta ao “bombeiro”.
Conhece Ana na praia. Ela é rica, branca (e louca de pedra).
Cuida da dona da pensão onde mora, Dona Clotilde, de cama há 3 anos.
6° ataque: Um executivo em frente a uma casa de massagens. 3 tiros no peito (para os filhos) e um na cabeça (para a esposa).
2ª Transa: Com Ana. Ela vê as armas e se mostra tão perturbada quanto ele. Os dois resolvem ir ao baile matar o maior número possível. “Ana me ensinou a usar explosivos e acho que estou preparado para essa mudança de escala.”
“O mundo inteiro saberá quem é você, quem somos nós, diz Ana.”
“Ponho as armas numa mala. Ana atira tão bem como eu, só não sabe manejar o facão, mas essa arma agora é obsoleta.”
“Fecha-se um ciclo na minha vida e abre-se outro”
Final aberto.

A Caminho de Assunção – 1ª pessoa (Hist.)
Ambientado em um intervalo das batalhas da Guerra do Paraguai que ficaram conhecidas como “dezembrada”, em 1868. Essas batalhas foram comandadas por Caxias para abrir caminho para Assunção.
O conto é minuciosamente descritivo. Ambientado após o ataque a Avaí (10 de dez. de 1868), com os soldados do 2° Regimento de Cavalaria. Morreram o Coronel Procópio (comandante) e o Tenente-coronel Rubião. O Major osé Rias assumiu o comando.
“Um estafeta surgiu para avisar que o General-Comandante (Osório) estava passando em revista às tropas. José Rias percorreu o acampamento berrando com os homens que estavam deitados, dormindo ou apenas olhando exaustos para o céu.”
Quando Osório apareceu, estava com o maxilar ferido. Nisso “O velho sargento Andrade, dado como morto, esticado ao lado de uma carreta de munição, as esporas gastas de ferro enfiadas na terra estrangeira, o uniforme roto e sujo de lama, levantou-se, fez uma continência e caiu ao chão.” Os soldados riem, Osório respondeu e foi embora …“num trote curto em direção ao acampamento do 5°.”

Encontro no Amazonas - 1ª pessoa
O narrador(sem nome) e Carlos Alberto, seguem um homem que havia entrado no Brasil pela Argentina e ido para o norte do país. De Belém para Manaus, Carlos Alberto segue de avião e o narrador de navio (o “Pedro Teixeira”)
O narrador faz um minucioso resumo da viagem e das pessoas que encontra, inclusive transando com uma mulher casada (Maria de Lurdes – mineira), cujo marido (Moacyr – gaúcho) vivia bêbado e dormindo. “Quinze dias de casada e já o odeio”
Continua na busca do homem e desce em todas as paradas para perguntar se alguém havia visto uma pessoa com semelhante descrição.
Uma personagem, Alencar, funcionário aposentado, sabe muito da história do rio e do estado do Amazonas. Uma forma de inserir erudição e factualidade ao conto.
Ao chegar a Oriximiná, o narrador encontra o homem perseguido, mata-o, cai em um espasmo e o conto termina sem que haja nem um tipo de explicação.

Mandrake - 1ª pessoa
Dr. Paulo Mendes (Mandrake), o narrador, é um investigador “que perdeu a inocência”. Tem muitos contatos na polícia (Guedes, Raul) e um sócio (Wexler)
Joga xadrez com (Berta Bronstein), mas tem algumas particularidades: nu, tomando vinho faísca.
O telefone toca e o contato é um fazendeiro suplente de senador chamado Cavalcante Méier. Sua amante (Marly Moreira) havia sido morta dentro do carro e ele está sendo chantageado por uma pessoa chamada Márcio que marcou um encontro (moto e blusão). Mandrake vai em seu lugar e vê o homem discutindo com uma moça pálida de cabelos negros. Os dois vão embora.
No dia seguinte Márcio diz que vai à casa de Méier, Mandrake pede que ele seja anunciado como secretário para negociar com o chantageador. Na casa de Méier conhece sua filha: Eva. Méier fica sozinho com Márcio e fecha o negócio. Paulo é dispensado, mas continua a investigar, pois encontra a garota pálida do bar na casa do empresário. Era Lili, sua sobrinha.
Mandrake segue Eva, por quem sente um imenso desejo, a ponto de contar para Berta.
Márcio Amaral, também conhecido como Márcio da Suzuki, foi encontrado morto em seu apartamento da mesma maneira que Marly: um tiro na cabeça. Foi encontrado em seu bolso, um bilhete de Marly sobre a separação com (Rodolfo) Méier, ameaçando contar tudo a todos. A polícia descobre que os disparos foram feitos pela mesma arma. Méier vira suspeito.
Eva vai procurar Mandrake em casa e ele diz que a ama. Ela confessa ter ficado perturbada e os dois dão as mãos. Eva confessa que Márcio e Lili se conheciam e que ele fornecia cocaína para ela. O dinheiro era dado pelo Méier para a sobrinha órfã.
Cavalcanti Méier chama Mandrake a sua casa e assume a culpa. Soa falso. Na saída, Lili pede para ir junto com Mandrake no carro e acaba contando que ela havia matado os dois. Era amante do tio havia dois anos e ele estava assumindo para protegê-la e ao relacionamento.
Mandrake deixa Lili para pegar um taxi e sai para procurar Guedes, e contar o que havia descoberto. Mais um final aberto. Neste conto a erudição de Fonseca fica por conta do Xadez e das inúmeras referências a jogadas e aberturas.

Onze de Maio - 1ª pessoa – Escrito em um único parágrafo.
Passa-se numa espécie de casa de asilo (o Onze de Maio), onde todos vivem em cubículos.
O autor põe em ação um personagem-narrador (José, um professor de história aposentado) que, internado, relata os sofrimentos e humilhações dentro daquele estabelecimento. Asilo este, que mais parece uma das prisões descritas por Foucault.
Ele sente imperar naquele lugar o abandono, a degradação, o desrespeito, a humilhação e a privação.
José, num primeiro momento, parece conformado com a situação em que se encontra: "um velho inerte, preguiçoso e entediado só pode abrir a boca para bocejar" ; entretanto, ele percebe as coisas à sua volta, vê que estão completamente isolados da sociedade, presos em um ambiente sem possibilidade de melhoria da situação. A comida é péssima e o tratamento é infantil.
Acrescentando-se que nem mesmo entre os idosos é permitido o diálogo, devem ficar o tempo todo em seus cubículos esperando pela morte. Os idosos são condicionados a aceitar o tratamento humilhante que lhes é dado, ficam cada vez mais débeis e assim, não oferecem resistência.
José, vítima do sistema: "Aquele ser velho me foi imposto por uma sociedade corrupta e feroz, por um sistema iníquo que força milhões de seres humanos a uma vida parasitária, marginal e miserável" , percebe que seus pensamentos não podem ser vigiados e que continua sendo o mesmo homem inteligente e astuto que sempre fora.
Une-se, então, aos seus companheiros, Pharoux (ex-policial) e Cortines (ex-professor de educação física), para realizar um motim em busca da liberdade. Invadem a casa do diretor do asilo e tomam o poder pela força. Ao final, enquanto os amigos comem, José está cansado e dorme...e o final fica aberto...
Uma curiosidade, a televisão está presente em toda a narrativa, e é utilizada como meio de alienação dos internos do asilo: "Vamos, vamos, veja a televisão, divirta-se, não fique aí imaginando coisas tristes, preocupando-se à toa” ; mas esta alienação se dá, preponderantemente, pelo fato de ser um circuito interno de televisão, que passa a mesma programação o tempo todo: "A TV fica ligada o dia inteiro. Deve haver, também, alguma razão para isso. Os programas são transmitidos em circuito fechado de algum lugar do Lar. Velhas novelas, transmitidas sem interrupção."; o narrador abre a possibilidade da televisão ser algo bom, porém, ela deve ser assistida sempre com um olhar crítico: “Os Irmãos [...] também têm televisão no quarto e assistem a outros programas que não são transmitidos para nós. Sei, por perguntas que faço inocentemente, que eles também dormem em frente ao vídeo. Televisão é muito interessante, descontando o sono e o esquecimento”.
Este conto, bem como o conto "O Cobrador", levanta várias questões sobre a sociedade pós-moderna, mas neste trabalho o objetivo foi buscar um entendimento da crise existencial vivida pelas personagens e o porquê de suas ações violentas.

Almoço na serra no domingo de carnaval - 1ª pessoa
O narrador é Zeca. Ele sobe a serra a caminho de um sítio da família de Sônia (sua namorada), onde há uma festa (com cerca de 100 pessoas).
Chegando no sítio, Zeca percebe que era o da sua família e ele chora. Pergunta sobre um lagarto e descobre que ele havia sido morto: “mamãe morria de medo dele!”
Após o pai de Sônia expressar pesar pela situação: “...eu não cheguei a conhecer ninguém de sua família, toda a operação foi feita através de um corretor, logo que chegamos a São Paulo. Soube do que aconteceu com vocês. A vida é assim mesmo. Mas vejo que você suportou bem os golpes.” Zeca leva Sônia até uma cachoeira dentro da mata e a estupra:
“Obriguei-a a deitar. Arranquei o seu biquini.
Vira de costas, anda.
Você acha que é assim que um homem trata a mulher que ele ama?
Cala a boca, eu disse, agarrando-a com força.
Quando acabei, levantei-me e fui embora sem olhar para trás.”
Final aberto

H.M.S. Cormorant em Paranaguá – 1ª pessoa (Hist.)
Um conto escrito em uma atmosfera de sonho e loucura, confirmada pelo final, em que o narrador parece estar preso em um hospício: surrealismo? (“Bustamante diz que Byron era incestuoso, fanfarrão, pederasta e sedutor de mulheres, que o Cormorant foi embora, que eu não sou o Álvares de Azevedo, que o ‘schottisch’ virou chorinho, que tudo mudou, outros navios de guerra, novos escravos, outros poetas, minha vida se esvai, chamai meu pai”)
Logo no início o narrador, ao entrar em seu quarto vestido de mulher (tinha ido a um baile, disfarçado) se pergunta: “Quem sou?”
Tira a roupa e vai conversando com Luísa (nome da irmã de Álvares de Azevedo) e contando coisas do baile.
Nova pergunta: “Quem sou eu?” e a resposta: “O dr. Bustamante, no hospital tem respostas: um poeta que apenas tem para provar seu valor o aplauso dos estudantes e dos bêbados. Mas pro inferno Bustamante, tenho o talento e apregôo, sou quem eu penso que sou e ainda terei tempo de alcançar a glória e morrer cedo, como Byron, aos trinta e seis, gritando coragem, entre espasmos de dor, calafrios, sezões, delírios; como Shelley, trinta anos; Keats, vinte e seis.”
Conversa com a irmã e diz que vai à taberna com Teresa. “Teresa existe para que moças como Luísa não sejam corrompidas. A prostituta tem uma função no mundo, a de satisfazer as paixões dos homens...”. Teresa chega, as duas se olham e admiram os vestidos. Enquanto trocam as roupas, o narrador pensa em um poema (“Glória Moribunda”): “Foi a cabeça ardente de um poeta/ esta fronte era bela, aqui, nas/ faces formosa palidez cobria/ o rosto seus cabelos eram loiros/ agora tudo é cinza.(...)Era uma fronte olímpica sombria,/ nua ao vento da noite que agitava/ as loiras ondas do cabelo solto,/ cabeça de poeta libertino/ corada pelo fogo da embriaguez,/ na fronte a palidez, no olhar o lume/ errante de uma febre ardente.”
Chama Teresa para ir à taverna. Aparece Byron. Os dois conversam e Luísa acha que ele está louco. “Loucura e juventude são coisas parecidas, mente flutua sem limites por espaços e tempos vazios.”
Na taverna aparece Byron com papel e começa a escrever. Clima de taverna: bebedeira, barulho, gente que entra e sai e o poeta esta com Teresa.
Os bêbados pedem um poema e ele declama um trecho do “Necrológio a Feliciano Coelho Duarte”, um amigo de faculdade que havia cometido suicídio:
“Ele era um Poeta, um irmão das Letras. Por que morreu? Perguntai às aves de arribação por que leva de vencida o tufão das tempestades. Sua existência fadava-se brilhante: as glórias da tribuna, os triunfos do gênio e talvez outras palpitações mais ardentes – o Amor! O vento da morte ao correr pela selva sagrada mirrou o cedro mais soberbo! Por que morreu?(…) Respeito ao cadáver, senhores! As grandes vidas, como essa foi, não morrem das doenças miseráveis, legados ulcerosos que a humanidade deixa aos filhos! Quando as harpas santas rompem suas cordas é que o vento de Deus roçou terrível por elas! Dorme, pois, criatura sublime, dorme em paz! Que os anjos te alumiem nos teus sonhos, como as estrelas do céu às noites escuras da terra. E a ti, que sentias como Poeta, a quem talvez o gênio matou num beijo de fogo, a quem Deus daria na existência a coroa mística dos amores, a Glória suas visões, a Tarde seus perfumes, a Noite suas lâmpadas de ouro: Boa Noite.”
Um novo amigo do poeta surge: Léo, e anuncia a declamação de um outro Poema: “Idéias Íntimas”: “Minha casa não tem menores névoas/ que as deste céu de inverno...Solitário,/ passo aqui as longas noites e os longos dias./ Dei-me agora ao charuto, de corpo e alma,/ Debalde ali de um canto um beijo implora,/ como a beleza que o sultão despreza,/ meu cachimbo alemão abandonado./ Lancei-me ao desviver, gastei na insânia/ das paixões a minha vida inteira,/ qual o fervor da escuma na cachoeira/ quebrei os meus sonhos...” (...) e do “Poema do Frade” (...) “...e do meio do mundo prostituto,/ só amores guardei ao meu charuto”. (Como você pode ver, o conto é uma montagem de episódios da vida, com trechos “pinçados” de poemas de Álvares de Azevedo. Portanto, tome cuidado com as questões intertextuais, aquelas que misturam as duas obras catalogadas na UEM. Continuando....)
Uma personagem que havia aparecido volta e anuncia o episódio Cormorant: Em 29 de junho de 1850. O cruzador britânico Cormorant entrou na Baia de Paranaguá para aprisionar navios brasileiros carregados de escravos trazidos da África. Como em outros contos, o autor se refere a fatos verídicos, como forma de mostrar erudição e conhecimento. (Um outro conto que segue a mesma linha é “Encontro no Amazonas”).
As mesas gritam que querem ouvir o poeta, que declama um trecho de Alexandre Herculano, seguido pelo poema “Pedro Ivo”: “ ‘Triste coroa sobre a qual acaba de ser gravada uma inscrição de infâmia!’ Envolto em seu manto prostituto,/ nosso Imperador olvida-se/ das glórias que sonhava./ Para ele, maldição! Seu leito/ lava em lodaçal corrupto./ Vede – a pátria debruça o peito exangue/ Onde essa turba corvejou, cevou-se!/ Nas glórias do passado eles cuspiram!/ Vede – a pátria ao Bretão ajoelhou-se,/ Beijou-lhe os pés, no lodo mergulhou-se!/ Eles a prostituíram! Malditos!”
Léo tenta levar Teresa, que se recusa. O narrador pergunta sobre o que conversavam enquanto declamava e ela lhe fala do convite. O narrador declama trechos de “Meu Anjo”: “tens o encanto, a maravilha, /Da espontânea canção dos passarinhos... / Tem os seios tão alvos, tão macios/ Como o pêlo sedoso dos arminhos.”
Teresa diz que o poeta é virgem, ele fica envergonhado, pensa em dizer que ama outra mulher. Volta para casa sozinho e bêbado e encontra Luísa.
Há um momento em que o autor quer sugerir o incesto, à maneira do que ocorrera com Byron: “O amor de um homem por uma mulher, exclamo, e agarro os ombros de Luísa e seu hálito virgem se funde com meu hálito fétido de ébrio imundo, vejo minha face de lodo pútrido no espelho e o doce rosto de Luísa exprime a revelação que aos poucos toma conta da sua mente e se aproxima lentamente, e nossas bocas se encontram, e dizemos um para o outro que não temos medo e somos lindos e nossos sonhos são bons e nossos corações são puros e deitamos na cama e abrimos corpo e espírito à nossa paixão, messe e paz, memória eterna.”
O poeta conversa com Byron sobre o seu incesto com Augusta, sua meio-irmã, com quem teria a filha Medora. Byron começa a desaparecer e o poeta declama um trecho de “Desânimo”: “sofro tanto, um Deus irado manchou de negra profecia os meus dias ao nascer...”
O poeta inglês desaparece e o narrador nos faz a confissão inicial dessa análise: “Bustamante diz que Byron era incestuoso, fanfarrão, pederasta e sedutor de mulheres, que o Cormorant foi embora, que eu não sou o Álvares de Azevedo, que o ‘schottisch’ virou chorinho, que tudo mudou, outros navios de guerra, novos escravos, outros poetas, minha vida se esvai, chamai meu pai”. Enfim, ficamos sem saber se era ele, ou não, mas resta uma data na parede: 25 de abril de 1852, data da morte do poeta.

O Jogo do Morto – único em 3ª pessoa
Mais uma vez o autor se repete. Um terceira pessoa (único da obra), Rubem trata da violência e do banditismo, descritos de modo banal, como se a morte fosse algo normal e aceitável.
A ação se passa na Baixada Fluminense, numa das zonas de domínio do Esquadrão da Morte (décadas de 70 e 80). Em um Bar (do Anísio – uma das personagens), todas as noites um grupo de “amigos” se encontra: Anísio, Marinho (dono da principal farmácia da cidade), Fernando e Gonçalves (donos de um armazém). “Eram pequenos comerciantes, prósperos e ambiciosos. Possuíam modestas casas de veraneio no mesmo condomínio da região dos lagos, eram do Lion’s, iam à igreja, levavam uma vida pacata.(...) Jogavam cartas e bebiam cerveja na noite em que foi inventado o jogo do morto. Anísio inventou o jogo.” (Consistia em acertar quantas pessoas o Esquadrão da Morte mataria no mês. Porém o jogo foi se especializando: “Além da quantidade, da idade e da cor dos mortos, foi acrescentada a naturalidade, o estado civil e a profissão.)
Um dia entra no bar uma pessoa mal encarada. Anísio dá a ele o apelido de Falso Perpétuo, já que dissera ter conhecido o verdadeiro.
Anísio começa a perder e fica muito irritado. Com a iminência do final do mês de Agosto, chama o Falso Perpétuo, que eles acreditavam ser um matador do Esquadrão, e “contrata” a morte de duas pessoas: Gonçalves e a filha (de 12 anos). “Dez mil se você matar uma menina e um comerciante. Você ou os seus colegas, para mim tanto faz.”
O Falso Perpétuo aceita, os dois entram no carro dele e se dirigem à casa de Gonçalves. Anísio fica no carro e ouve os três disparos. O Falso Perpétuo volta e diz que matou os dois...e “a velha, de lambuja”.
Anísio diz que colocou um apelido no matador, que saca da arma e o mata: “O Falso Perpétuo tirou da cintura um enorme engenho negro, apontou para o peito de Anísio e atirou. Anísio ouviu o estrondo e depois um silêncio muito grande. Perdão, ele tentou dizer, sentindo o sangue na boca e procurando se lembrar de uma prece, enquanto o rosto ossudo de Cristo ao seu lado, iluminado pela luza da rua, escurecia rapidamente.”